sábado, 19 de março de 2016

Um Nome Escrito em Sangue. Matt Rees. «Abaixo desse suave fluxo de luz, obscurecido pela sombra, com a mão estendendo-se para convocar o seu futuro discípulo, via-se o rosto barbado de Jesus. Que ideia brilhante…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A História de Caravaggio. Roma. Jardim do Mal. 1605
«(…) Ele é o artista mais famoso de Roma. No final da nave, Scipione Borghese persignou-se. Sua mão correu pelas roupas escarlates lenta e voluptuosamente, como se estivesse acariciando o peito de uma amante. Acha que pode conservá-lo com você? Não agora que o seu tio foi consagrado papa, pensou o cardeal del Monte. A indicação do novo pontífice transformou Scipione no príncipe mais poderoso da Igreja de Roma. Ele vai forçar o meu protegido a assinar as suas cartas como vossa humilde criatura. Se acha que é possível controlar Caravaggio, meu bom senhor, ficarei feliz em apresentá-lo para que o senhor possa tentar ficar com ele. Ele obedece a um poder maior que o seu ou o meu, disse ele, fazendo um gesto em direcção ao crucifixo de ouro que reluzia no altar à luz que penetrava pelas altas janelas. E não estou referindo-me ao Santo Padre, que Deus o abençoe. Scipione inclinou o pulso, com o indicador e o mínimo estendidos, como se fossem os chifres do Demónio. Del Monte fez uma careta ao ver um gesto tão profano feito pela mão cuidadosamente tratada do novo árbitro das artes e do poder na cidade dos papas. Pelo que ouvi falar de seu comportamento, a autoridade de Caravaggio não provém de cima, mas lá de baixo, disse Scipione. Os artistas são tipos difíceis. Eu sei como dobrá-los à minha vontade. Com os duzentos ducados anuais que o trono de São Pedro lhe concedeu, sei que vai achar um meio de fazer isso. Del Monte guiou Scipione até à capela da nave esquerda. Aqui estão eles. Scipione empurrou o barrete escarlate para a parte posterior da cabeça, coçou o queixo e ficou puxando, de maneira ruminante, a ponta do cavanhaque. Depois, passou a língua pelo lábio superior. Ele era jovem e delicado, mas alguma coisa no seu rosto deixava fácil prever como ficaria quando engordasse. E este, com certeza, vai engordar, pensou del Monte. O corpo mal contém a avareza do homem. Deem-lhe apenas alguns anos de poder absoluto e verbas ilimitadas, para que a sua barriga se amplie e o seu queixo se multiplique. O famoso orgulho da Igreja de São Luís dos Franceses, disse Scipione. Os dois cardeais passaram pela balaustrada de mármore verde, entrando na capela dos Contarelli. O anjo e São Mateus e O martírio de São Mateus, sem dúvida duas obras maravilhosas. Sim, mas esta é a tal. Esta é a obra, disse Scipione, voltando-se para a enorme tela sobre a parede à esquerda do altar. A vocação de São Mateus, disse del Monte, abrindo as mãos num movimento largo. Admito que até eu, que reconheci seu talento antes de todos os outros patronos, nunca esperei que um génio de tamanha virtuosidade se manifestasse nele. É revolucionária. Em toda essa escuridão, Scipione afastou os pés e pousou as mãos no ventre. Ele movimentava a mandíbula e mexia as bochechas como se estivesse devorando a tela diante dele. A vocação mostrava cinco homens ao redor de uma mesa. Três jovens usavam vistosos gibões e chapéus emplumados. Os outros tinham os cabelos grisalhos. Um cómodo vazio, com paredes de cor parda. Uma janela suja e que não permitia a passagem da luz. Mas, da direita, onde um sol vívido iluminava a própria capela, via-se um fluxo de quentes tons de amarelo e castanho, como se penetrasse por uma janela alta e iluminasse um porão. Abaixo desse suave fluxo de luz, obscurecido pela sombra, com a mão estendendo-se para convocar o seu futuro discípulo, via-se o rosto barbado de Jesus. Que ideia brilhante, disse Scipione, a de deslocar Nosso Senhor da sua tradicional posição no centro brilhante da composição. E, contudo, ele domina a cena. É isso mesmo, del Monte. O significado da obra não nos é imposto por céus brilhantes e anjos radiosos. Precisamos procurá-lo. Como o próprio São Mateus. Procurá-lo dentro de nós, acrescentou Scipione, apontando para uma das figuras sentadas, que parecia apontar para si mesma, perguntando-se se não era ele o convocado por Cristo. Quando essas obras foram entregues para a São Luís cinco anos atrás, disse del Monte, eu sabia que transformariam a pintura para sempre. Agora, em qualquer igreja de Roma pode-se ver que cada nova obra de arte ou é uma cópia do estilo de Caravaggio por um de seus admiradores ou uma furiosa rejeição dele por alguém que deseja prender-se ao estilo da última metade do século. Caravaggio hoje está presente em todas as obras, quer os pintores o admitam ou o refutem». In Matt Rees, Caravaggio, tradução de Valter Siqueira, 2012, Novo Século Editora, 2014, ISBN 978-854-280-209-2.

Cortesia NSéculoE/JDACT