quarta-feira, 30 de março de 2016

O Senhor do Falcão. Valeria Montaldi. «O que se passa, miúdo? O que tem o teu cão? A voz era de alguém que se aproximara por detrás dele. O miúdo virou-se erguendo os olhos para o homem alto que se lhe dirigira»

jdact e wikipedia

Milão. 1226
«Está aberta a caça aos hereges e os inquisidores povoam as ruas da cidade. O cadáver de uma jovem mulher aparece a boiar nas águas do canal do Vettabbia, com o corpo dando sinais de parto recente. Só que da criança nem rasto. Passados 17 anos, alguém vai interrogar-se sobre o que realmente terá acontecido naquela noite. Arnolfo Sala, abade do mosteiro de San Simpliciano, atormentado por um sonho recorrente e com suspeitas antigas que só ele conhece, encarrega o frade Matthew de investigar o caso. Pelas ruas de uma Milão abalada pela perseguição aos hereges e pela luta contra o imperador Frederico II, o frade inicia a sua investigação. Por lugares ainda hoje reconhecíveis, como o Broletto, centro político e comercial da cidade, o bosque de Quadronno ou o Hospital do Brolo, Matthew entrecruza as histórias de Isaac, médico judeu, e da sua bela filha Raquel. Mas só o encontro com Guglielma, uma vidente e mística malquista aos olhos da igreja milanesa, assinalará indelevelmente a consciência do frade, indicando-lhe o caminho a seguir para concretizar a sua missão e resolver o mistério. A água turva do canal formava remoinhos escuros que, aos poucos, se alargavam em ondas lentas e preguiçosas; entre os seixos da margem, as ervas, miseráveis, absorviam, a custo, as franjas daquela espuma oleosa. As bolas esbranquiçadas brilhavam um instante apenas antes de explodir, depositando-se, em seguida, sobre as últimas babas de água. Segurando entre os dentes um pauzinho de madeira, um cão de pêlo ruivo corria ao longo dos diques, seguido por um miúdo que o chamava aos berros. O animal virava-se de vez em quando, como que para avaliar a distância que o separava do seu pequeno dono, retomando, seguidamente, a corrida. Depois de, cauteloso, ter evitado as rodas de uma carroça carregada de mercadorias, o animal parece ter-se acalmado e, tendo largado o pauzinho, começou a descer, com todo o cuidado, na direcção do canal, atento para não escorregar por entre os seixos viscosos. Com a língua de fora, sedento, estava prestes a tocar a água quando, de repente, o pêlo se lhe eriçou e a cauda lhe pendeu. Ficara imóvel como uma escultura de pedra, com o focinho esticado; só as narinas vibravam, farejando freneticamente a superfície da corrente. De seguida, porém, um latido fortíssimo fez-se ouvir provindo daquela goela. O miúdo, que já estava quase a apanhá-lo, parou repentinamente, assustado. O animal latiu de novo, mas o som transformou-se desta vez e quase subitamente num ganido doloroso.
O que se passa, miúdo? O que tem o teu cão? A voz era de alguém que se aproximara por detrás dele. O miúdo virou-se erguendo os olhos para o homem alto que se lhe dirigira; a boca delicada e os olhos claros sorriam benévolos naquele rosto escurecido pelo sol e as mãos calejadas seguravam um saco vazio, engordurado e rôto. O rapazinho não respondeu, atento, de novo, aos ganidos do cão, que, a passos cautelosos, continuava a descer em direcção à água. Quieto, Martino! Pára! O animal obedeceu, sem, todavia, desistir do seu lamento sonoro. Aterrado com a possibilidade de o cão ser levado pela corrente, o miúdo correu então para o dique, aos tropeções, por entre os seixos. A um palmo do cão, deu um último salto e segurou-o de repente pelo rabo, deixando-se depois cair de joelhos sobre os seixos. O homem alto, que o seguira, parou mesmo atrás dele. Martino, pára, pára já! Pode saber-se o que te deu? Nunca te vi nessa loucura... As palavras de reprovação do miúdo soavam assustadas: o animal tremia, mantendo, todavia, as patas da frente firmemente plantadas na água. As narinas dilatadas farejavam, convulsas, o pelo mantinha-se totalmente eriçado, escondendo quase completamente a forma das orelhas. O homem alto aproximou-se: depois de ter pousado uma mão protectora nas costas do miúdo, observou atentamente o canal, percorrendo a superfície com os olhos. A sua já longa familiaridade com aquela enseada do Vettabbia havia-lhe ensinado que a corrente preguiçosa e suja transportava, por vezes, as coisas mais horríveis: o seu trabalho de descarregador de barcos habituara-o a encontrar na margem todo o género de lixo, desde excrementos ali depositados há pouco a carcaças de animais mortos. Era exactamente este último e penoso tipo de lixo que temia, considerando o comportamento do cão ao aproximar-se da água. Mas preparava-se já para levar o miúdo de volta, ajudando-o a arrastar-se atrás do seu teimoso companheiro de brincadeira quando os seus olhos se fixaram num ponto do canal relativamente perto do local onde os barcos atracavam. À superfície, mesmo à tona da água, boiava qualquer coisa estranha: parecia uma massa esbranquiçada, comprida como um grande peixe mas não tão compacta. Aparecia e desaparecia com os lentos movimentos da corrente, arrastando-se atrás de uma espécie de emaranhado de algas escuras. O homem atentou melhor semicerrando os olhos para se proteger do reflexo do Sol: quando a mensagem inequívoca que as pupilas lhe enviaram lhe chegou à mente, um vómito incontido saiu-lhe da garganta. Apoiando as mãos nos joelhos, suspirou profundamente e virou-se: o miúdo fixava-o, estupefacto com a sua súbita palidez. Vai-te embora, vai, pequeno, volta para casa... Já! Espavorido mais pela tremura da voz do que pelo tom imperativo do homem, o miúdo afastou-se, agarrando o cão pelo cachaço e virando-se para trás a cada passada. Só quando o viu já em segurança no dique e depois a caminhar pela estrada fora, o homem ousou voltar a olhar para o canal. O cadáver aproximava-se da margem, lentamente. A forma do corpo ia-se delineando aos poucos: ora aparecia uma perna a flutuar, ora um pé, enquanto o que julgara ser um intrincado de algas se alargava, acariciado pela corrente, num longo velo de cabelos negros». In Valeria Montaldi, O Senhor do Falcão, 2003, tradução de Maria Irene Carvalho, Editorial Notícias, Editora Casa das Letras, 2005, ISBN 978-972-461-618-6.

Cortesia de EditorialNotícias/ECdasLetras/JDACT