terça-feira, 29 de março de 2016

O Quinto Mandamento. Barry Eisler. «Numa noite, alguém que eu nunca tinha visto antes, decerto um dos civis que frequentavam o ginásio, que gostava do sítio e achava que misturar-se com pretensos mafiosos o tornava mais duro por osmose»

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«(…) O ponto fraco do yakuza era o vício da musculação. Vá-se lá saber qual a origem: se um historial de levar tareia no recreio, que lhe tivesse dado vontade de se mostrar visivelmente forte desde então, numa tentativa de superar uma sensação de insuficiência por ter um corpo naturalmente mais franzino do que os caucasianos, se um homoerotismo reprimido como aquele que motivava Mishima. Talvez alguns dos mesmos impulsos que haviam levado a que se tornasse, desde logo num mafioso. Claro que a obsessão dele nada tinha que ver com a saúde. Aliás, nitidamente, o tipo era consumidor de esteróides em excesso. Tinha o pescoço tão grosso que dava a impressão de ser possível passar uma gravata por cima da cabeça sem ter de folgar o nó além de acne tão grave que as duras luzes incandescentes do ginásio, desenhadas para exibirem com máxima definição os músculos que os frequentadores desenvolviam nos seus corpos, projectavam pequenas sombras na paisagem esburacada do seu rosto. Provavelmente tinha testículos do tamanho de passas de uva, o sangue a passar desenfreado pelo coração acelerado. Além disso, já o tinha visto perder as estribeiras no tipo de acesso violento sem qualquer provocação que é outro sintoma do abuso de esteróides. Numa noite, alguém que eu nunca tinha visto antes, decerto um dos civis que frequentavam o ginásio, que gostava do sítio e achava que misturar-se com pretensos mafiosos o tornava mais duro por osmose, começou a tirar alguns dos inúmeros discos de ferro que faziam peso na barra que o yakuza tinha estado a levantar. O yakuza afastara-se do banco de supino, provavelmente para fazer um intervalo, e o novato deve ter-se convencido, erroneamente, de que isso queria dizer que o outro tinha acabado. O próprio novato também era de tamanho respeitável, a sua camisola de cavas, de licra colorida, mostrava que tinha tronco e braços de halterofilista. Talvez alguém devesse tê-lo avisado, mas os sócios do clube eram sobretudo chinpira, jovens yakuza de baixa patente e aspirantes a rufas, não eram exactamente bons samaritanos interessados em ajudar o próximo. Seja como for, é preciso ser-se, no mínimo ligeiramente estúpido para se começar a desmontar uma barra como aquela que o yakuza estava a utilizar sem se olhar primeiro à volta, para pedir autorização. Provavelmente estava a pesar cento e cinquenta quilos, talvez mais. Alguém chamou a atenção do yakuza e apontou para lá. Este, que estava de cócoras, empinou-se e troou: Orya!, suficientemente alto para fazer vibrar o vidro laminado na frente da sala rectangular. Que mer… é essa?! Todos levantaram as cabeças, tão espantados como se tivesse havido uma explosão, inclusive o novato, que ainda há pouco estava tão distraído. Ainda a bradar impropérios, o yakuza avançou a direito para o banco, em passos largos, aproveitando bem a voz, quer tenha sido por instinto ou com intenção, para desorientar a sua vítima. Tudo no yakuza, as palavras, o tom de voz, o movimento e a postura, gritava: ataque! Mas o outro estava demasiado tolhido, fosse pelo medo ou pela negação, para se desviar da linha de ataque. Embora tivesse na mão um disco de ferro que pesava dez quilos e tinha a superfície substancialmente mais dura do que o crânio do yakuza, o homem não fez nada excepto deixar cair o queixo, talvez surpreendido, talvez para formular um pedido certamente fútil de desculpas». In Barry Eisler, O Quinto Mandamento, 2004, tradução de Luís Coimbra, Saída de Emergência, 2011, ISBN 978-989-6337-304-7.

Cortesia de SEmergência/JDACT