segunda-feira, 21 de março de 2016

O Crime dos Illuminati. 1787. César Vidal. «Sentiam-se surpresos diante de uma manifestação da maldade humana que ultrapassava aquilo a que estavam acostumados a presenciar no seu papel de médico, juiz…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Os Filhos da Luz. Baviera, 1787
«(…) O problema era que, quando se encontrava cara a cara com um cadáver, os seus sentidos viam-se tão invadidos pelo cheiro de morte, pela visão da morte e pelo toque da morte, que a fé numa vida duradoura era, talvez, não aniquilada, mas ofuscada como o sol encoberto por um mar de nuvens cinzas e algodoadas. E, justamente quando chegava a esse ponto, uma mistura de repugnância e mal-estar, de repúdio e desagrado, apoderava-se dele, provocando-lhe suor nas mãos e angústia no peito. De boa vontade ele ter-se-ia desligado da investigação dos homicídios, mas semelhante graça não lhe foi concedida. Koch sentia-se tão satisfeito com a sua maneira de trabalhar, uma faca de dois gumes, sem dúvida, que não apenas se tinha transformado num ajudante privilegiado para o seu trabalho de resolução, mas também, em algumas ocasiões, insistia em que fosse encarregado de dar os primeiros passos. Exactamente por causa disso, tinha agora que examinar aquele despojo sujo e carcomido que um caçador infeliz tinha encontrado. O homem tinha chegado tremendo ao posto de polícia e, num primeiro momento, os agentes que o viram pensaram que ele tinha acabado de sofrer alguma desgraça. E, até certo ponto, era verdade. Enquanto passava por terras que não eram suas, tinha encontrado um cadáver. Noutras circunstâncias, o peso da lei teria caído sobre ele, acusando-o de caçar furtivamente ou, pelo menos, de invasão de propriedade privada. Agora, no entanto, aqueles detalhes estavam amenizados pela gravidade de um homicídio. Bem, sucedera assim porque Koch tinha enviado Steiner para examinar o corpo e ele tinha decidido que era uma perda de tempo atacar um pobre homem que caçava lebres de forma ilegal, quando graças a ele se podia botar as mãos num delinquente de muito maior envergadura. Koch nunca teria aprovado essa maneira de agir. Por acaso devemos perdoar o transgressor menor porque existe outro maior?, teria perguntado de forma retórica, para depois acrescentar indignado: de forma alguma, Steiner, de forma alguma. Mas ele encarava isso de outra maneira, e agia de acordo com isso. Agradeceu ao homem, disse-lhe num aparte discreto que não deveria dizer a ninguém o que estava fazendo naquele território de caça e, acto contínuo, mandou-o ir descansar em casa. Levantaram o cadáver na presença de um dos juízes mais experientes de Ingolstadt, que pensava em se aposentar em menos de um ano, mas, no momento, insistia em se manter no activo. Coisa ruim, disse quando passou os olhos sobre o morto. Alimentaram-se do rapaz. Não era nenhum exagero. A pancada que lhe tinham aplicado na cabeça e que, quase com certeza, tinha ocasionado a sua morte não era nada do outro mundo. Tratava-se do típico traumatismo que deixa claro e manifesto como é fácil obrigar um pobre infeliz a cruzar o umbral que separa a vida da morte. Até aí, tudo estava dentro dos limites da normalidade. O problema era quando se examinava o restante do corpo. O pescoço, o peito e o rosto apresentavam arranhões nada desprezíveis, mas o pior era a região que se estendia pela frente do umbigo até o início das coxas e por trás em torno do ânus. Os animais tinham-se fartado, não havia dúvida, mas tudo parecia indicar que alguém se tinha antecipado a eles. Qual a sua opinião, herr doktor?, perguntou o juiz quando o galeno terminou o exame do cadáver sob os olhares atentos dos presentes. Pobre rapaz..., murmurou de forma quase inaudível o médico. Ninguém podia negar a justeza daquelas palavras, mas, para falar a verdade, não esclareciam muito a situação. Pobre rapaz, sim, mas porquê? Poderia ser um pouco mais..., explícito?, atreveu-se a dizer Steiner. O médico respirou fundo e, sem afastar os olhos do cadáver, começou a nutrir um cachimbo de tubo longo. Era um bonito exemplar de artesanato bávaro, com um bocal de madeira entalhada primorosamente e um fornilho alongado de porcelana. Devia ter-lhe custado bem caro, pensou Steiner. Bitte, algum de vocês tem lume?, perguntou o médico depois de ter a certeza de que o tabaco estava bem prensado no interior do cachimbo. Foi o juiz quem atendeu à sua solicitação e, imediatamente, o ambiente se encheu de uma fumaça azulada que desprendia um cheiro agradável de uma substância que Steiner não conseguiu identificar, mas que ele agradeceu porque encobria, pelo menos em parte, o fedor da morte. Eles mataram-no de um só golpe. Isso é indubitável, mas..., interrompeu a explicação para dar uma nova sugada no cachimbo, mas o mais terrível é que o crime veio acompanhado de um comportamento..., bem, recuso-me até a qualificá-lo. Um pouco antes ou um pouco depois da morte, a vítima foi sodomizada. Desculpe?..., exclamou Steiner, que não tinha certeza de ter escutado direito. Ele foi sodomizado, disse o médico, com a mesma serenidade com que teria comentado que as nuvens anunciavam chuva. Está querendo dizer..., começou a dizer Steiner, que não conseguia dar crédito às palavras do galeno. Estou querendo dizer que o assassino cometeu com este infeliz o pecado pelo qual Deus destruiu as cidades ímpias de Sodoma e Gomorra. Mas não foi uma acção voluntária. Violentaram o rapaz. O alargamento do ânus não deixa margem a dúvidas. Desde já, espero que o tenham matado antes. E as feridas no púbis?, perguntou Steiner. Algumas podem ter sido ocasionadas por animais, mas tenho a impressão de que já encontraram o trabalho bem adiantado. O assassino fartou-se com as partes do rapaz. O senhor acha que pode ter sido uma vingança por ele se ter recusado a se entregar?, perguntou Steiner. O doutor encolheu os ombros, deu uma nova sugada no cachimbo e lançou no ar uma baforada de fumaça azulada. Desta vez não foi uma sequência de gestos prazerosos, mas um encadeamento de movimentos cansados, quase dolorosos. Talvez..., talvez..., disse. Em todo o caso, depois de o matar, parece que se deleitou em profanar o cadáver. Um silêncio incómodo desceu sobre o aposento. Dava a impressão de que nenhum dos presentes queria estar ali, de que teriam dado alguma coisa valiosa para se poderem livrar da obrigação de examinar o cadáver. Sentiam-se surpresos diante de uma manifestação da maldade humana que ultrapassava aquilo a que estavam acostumados a presenciar no seu papel de médico, juiz ou policial». In César Vidal, O Crime dos Illuminati, 1958, tradução de António Borges, Relume Dumará, Ediouro Publicações S.A., 2006, ISBN 857-316-6491-3.

Cortesia de RDumará/JDACT