quarta-feira, 16 de março de 2016

Dez histórias de amor em Portugal. Alexandre Borges. «Sentindo o casco abrir por debaixo dos seus pés nervosos, agarrou o manuscrito junto ao peito, apertando com toda a força que podia despender, e, gatinhando...»

jdact e wikipedia

«Bastariam alguns minutos de recurso à memória para qualquer pessoa poder enumerar histórias de amor célebres durante horas a fio. Da literatura ao cinema, passando pela música ou pela pintura, o amor é, sem sombra de dúvida, o tema mais explorado pelo espírito criativo do homem. Nenhum artista terá deixado de transformar o amor em objecto de criação, ao ponto de muitas vezes se olhar para este tema como um lugar-comum ou uma banalidade. No entanto, todos os que já amaram sabem que o amor é um lugar, mas nada tem de comum. Entregámo-nos ao desafio de recordar grandes romances portugueses. Sabemos que o amor não conhece fronteiras ou culturas, mas ainda assim quisemos descobrir como se ama no nosso país. Percebemos rapidamente que o manancial de histórias de amor que qualquer um de nós poderia enumerar inclui poucos personagens que falem a nossa língua. Talvez Pedro e Inês fossem mencionados, mas no meio de uma tabela onde Romeu e Julieta seriam cabeças de cartaz. Então quais são as grandes paixões portuguesas? Procurámos reunir 10 histórias que possam servir de referência a uma lusa forma de amar, optando por convocar para este livro uma série de portugueses célebres, do presente e do passado, cujas vidas amorosas foram excepcionais. Nalguns casos, é um amor marcado pela tragédia, noutros pelo final feliz. Há paixões excessivas ou marginais e romances cândidos. De Pedro I e dona Inês de Castro a José Saramago e Pilar del Rio, de Camilo Castelo Branco e Ana Plácido a Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis, pretendemos pintar a paisagem do amor no nosso país. Neste livro encontrará 10 janelas onde se pode debruçar e admirar o amor português.

Dinamene e Luís de Camões. O Nome Sepultado nas Águas
1556. As vigias ora estavam cobertas pela espuma, ora eram lavadas pelas águas. Aqui e ali, pequenas algas transformavam-se em monstros marinhos, de braços trepando aos tombadilhos, surgindo, do breu, para inundar o olhar dos marinheiros aterrados. No convés, dois homens abraçados tremiam o frio do degredo, enquanto cada um impedia o outro de se deixar dominar, a cada vez que caíam. Mesas e cadeiras eram arrastadas, escadas abaixo, até aos calabouços, os restos de comida alojados nas frestas da madeira dos soalhos, o imediato escondido na cozinha para se aquecer e tentar fechar as feridas dos joelhos; as velas rasgadas arrastavam as suas dores pela proa e ajudavam o assobio dos ventos a tornar-se ainda mais aterrador. Dois ladrões agrilhoados, lutando contra as correntes, gritavam a quem quer que os acudisse, mas o guarda, sentado do outro lado da grade, chorando a sorte e o arrependimento, já não se poderia erguer da sua alcova, com um mastro tombado a prender-lhe o ombro e os dedos trémulos da mão ainda a tentar alcançar o molho de chaves que tilintavam trinta centímetros à sua frente. Luís corria pela proa, atirado ao chão por uma vaga, para depois se erguer, a esforço, avançar alguns metros e ser, de novo, lançado ao ar pelo balancear da embarcação. Havia quem avistasse o capitão, ajoelhado perto do leme, rezando sabe-se lá a que deus. O negro da noite não permitia que se encontrasse a mão procurada, por entre a chuva, e a luz dos relâmpagos. Do longe, se alguém o pudesse ver, aquele navio não passaria de uma folha seca da árvore que morre, projectada nos ares e agitada ao vento, para ser mastigada pelas águas e fazer-se nuvem, até reingressar no ciclo das coisas, para que nascesse, talvez, flor noutro lugar qualquer. Mas essa história não é a de que esta narrativa fala. Na história desta narrativa, não há qualquer redenção pela naturalidade do tempo, na regeneração dos corpúsculos feitos órgãos, corações, tomados novos seres vivos, alguns deles, humanos. A casca de noz que dançava irracional a meio das ondas não teria um minuto para a salvação, em cada um dos seus homens, no olhar das suas mulheres, uma a uma, chamada pelo nome próprio. Luís corria, Luís corria mais um pouco, e era deitado ao chão, escorregava pelo barco balanceado pela tempestade, era arrastado com outros homens pelos restos dos abrigos, até que os ossos embatessem nos corpos daqueles que se haviam já rendido. À Lua não seria permitido deixar qualquer sombra, nessa noite, iluminar, por um segundo, qualquer coisa para o eterno, ajudar o capitão a perceber a que imagem orava ou a parca visão de Luís a encontrar, naquele inferno, a pele breve de Dinamene. Luís alcançou o caixa de madeira que rodopiava no porão. A sua fechadura estava violentada e as primeiras folhas de papel podiam já ver-se, espreitando pela tampa entreaberta, com os cantos amarelecidos a serem tragados, rapidamente, pela humidade. Sentindo o casco abrir por debaixo dos seus pés nervosos, agarrou o manuscrito junto ao peito, apertando com toda a força que podia despender, e, gatinhando, gritando a voz rouca o nome que mal conseguia soletrar, percorria os escombros da barcaça que boiavam por entre a angústia. Do lado de lá da barreira de destroços, com os cães presos por debaixo das traves latindo contra o temporal, a mulher esperava por ele». In Alexandre Borges, Dez histórias de amor em Portugal, Editorial Notícias, 2003, ISBN 972-461-4B5-9, Lisboa, Editora Casa das Letras-Leya, 2012, ISBN 978-972-462-067-1.

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