terça-feira, 22 de março de 2016

Cátaros e Católicos numa aldeia francesa. Montaillou. 1294-1324. Emmanuel le Roy Ladurie. «Depois de algumas devastadoras incursões dos inquisidores de Carcassonne, que vieram como réplica, foi no dia 15 de Agosto, de 1308 que terá tido lugar a prisão em massa das pessoas…»

jdact

Prefácio
«(…) Desde há um século, vários eruditos ou historiadores tomaram conhecimento do grande documento de Pamiers. Entre eles, figuram o alemão Döllinger, que se tornou célebre pelos seus conflitos com o papado romano e pelos seus belos estudos sobre a heresia medieval e também vários eruditos franceses, muitas vezes de origem meridional: Chafles Molinier, mons. Douais, JM Vidat, desde o início do século XX...; e muitos outros, em seguida. Os trabalhos mais eruditos e mais extensos sobre o próprio manuscrito vêm de JM Vidal. A publicação integral do registo deve-se a J. Duvernoy (1965). Não-deixa de ter os seus defeitos, vigorosamente denunciados pelo padre Dondaine, mas tem, no entanto, o imenso mérito de existir, não dispensando em todo o caso o recurso ao original. O acaso das investigações de Fournier e a distribuição muito desigual da heresia determinaram que 28 acusados, conhecidos pelo Registo, sejam originádos de Montaillou e de Prades; e, dentre eles, 25 são mesmo de Montaillou. Esta circunstância foi uma catástrofe para os aldeões desta terra. Em contrapartida, oferece ao historiador inestimáveis possibilidades. É de facto sabido, desde os trabalhos de Redfield, de Wylie e de alguns outros, que a visão terra a terra, à flor do solo, da sociedade camponesa, se concilia perfeitamente com a monografia aldeã. A nossa pesquisa não será excepção a essa regra de ouro: a aldeia posta em causa e que o acaso dos documentos escolheu para nós, é Montaillou, a 1300 m de altitude, perto das nascentes do Hers; a Leste do alto vale de Ariège e não longe dele. Fixada no seu planalro, Montaillou desempenhou, por volta de 1290-1320, na época a que se referem os interrogatórios de Jacques Fournier, diversas funções: a comunidade serviu de refúgio à heresia gíróvaga que, destruída nas regiões baixas, travou um combate de honra na alta Ariège. A criação de gado local proporcionou apoio à transumância: para a Catalunha, para as regiões do Aude ou em direcção à alta montanha pirenaica. Há ainda, para as devotas do culto mariano, e elas são numerosas, uma peregrinação à Virgem.
Fixemo-nos primeiramente, nesse problema crucial que é a heresia: os burgos e pequenas cidades da regiao baixa, com Pamiers à cabeça, estavam, na época focada neste livro, quase inteiramente reconquitados pela ortodoxia; a propaganda das ordens mendicantes e as incursões policiais tinham saneado, ou quase, o abcesso cátaro ou valdense. Jacques Fournier, na sede da sua diocese, podia doravante permitir-se o esmero: reprimia um quarteto de homossexuais; acossava mesmo, à sombra da sua catedtal, o folclore das almas do outro mundo. Compleamente diferente era a situação de Montaillou, aldeia à qual é preciso acrescentar neste caso a zona circunvizinha da região de Aillon e a região alta adjacente de Sabarthès (ou seja, a alta Ariège, a sul do desfiladeito de la Barte). Longe das polícias de toda a espécie, a nossa aldeia oferecera, a partir de 1300, um terreno fértil e de início sem grande perigo pata a acção militante dos irmãos Authié, missionátios da reconquista câtara. As coisas, no entanto, tinham-se deteriorado rapidamente. Depois de algumas devastadoras incursões dos inquisidores de Carcassonne, que vieram como réplica (foi no dia da Assunpção, 15 de Agosto, de 1308 que terá tido lugar a prisão em massa das pessoas de Montaillou pela Inquisição [maldita]de Carcassonne), Jacques Fournier por sua vez reagiu duramente perante a situação, para ele intolerável, que os Authié tinham criado, a qual se prolonga para além da sua morte: de 1319 a 1324, multiplica as convocações e os interrogatórios decretados aos habitantes da aldeia culpada. Põe a claro toda uma série local de actividades heterodoxas que se escalonam desde a década de 1290. Maníaco do pormenor, põe nu, para além das crenças e dos desvios, a própria vida da comunidade. Eis, pois, Montaillou, em si e por si, ao compasso das investigações de Jacques Fournier; limitei-me a reagrupá-las e reorganizá-las, no espírito da monografia aldeã.

Ecologia de Montaillou. A casa e o pastor. Ambiente e poderes
Em primeiro lugar, duas palavras a propósito da demografia da aldeia, sobre a qual serei breve, reservando-me a oportunidade pata aí voltar, quanto às componentes. Montaillou não é uma grande paróquia. Na altura dos acontecimentos que motivaram a investigação de Fournier, a população local contava entre 200 e 250 habitantes. No fim do século XIV, passada a peste negra e os primeiros efeitos, directos ou indirectos, das guerras inglesas, as listas de fogos e os livros foreiros do condado de Foix não enumeram na mesma comunidade mais do que uma centena de almas, distribúdas por 23 fogos. Ou seja, a habitual quebra de mais de metade da população, que se regista um pouco por toda a parte no Sul de França, sob a acção das catástrofes da segunda metade do século XIV. Mas, na altuta da repressão anti-cátara, ainda falta um pouco para isso...» In Emmanuel le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan de 1294 à 1324, Editions Gallimard, 1975, Montaillou, Cátaros e Católicos numa aldeia francesa. 1294-1324, Edições 70, Lisboa.

Cortesia de Edições70/JDACT