sábado, 12 de março de 2016

Caçando Carneiros. Haruki Murakami. «Estavam presentes apenas os familiares, gente idosa na sua maioria. A cerimónia foi presidida pelo irmão mais velho, ou quem sabe cunhado, um homem aparentando pouco mais de trinta anos»

jdact e wikipedia

O piquenique das tardes de quarta-feira
«Soube da sua morte por um amigo. Ele viu a notícia quando passava os olhos pelas páginas de um matutino, e leu-a lentamente para mim ao telefone. Texto simples. Tipo do artigo em geral delegado a repórteres recém-formados à guisa de treino. No dia tanto do mês tal, um caminhão dirigido por alguém atropelou outro alguém em certa esquina. Alguém estava sendo investigado por homicídio involuntário. Parecia um poema curto, desses de primeira página de revista. Onde vai ser o enterro?, perguntei. Não faço ideia, respondeu. Para começo de conversa, ela tinha casa e família? Tinha, é claro. Liguei no mesmo dia para a esquadra da polícia e obtive o seu endereço e o número de telefone. Liguei o número em seguida e informei-me a respeito dos detalhes do enterro. Quase tudo se consegue com um pequeno esforço, já disse alguém. A sua casa ficava na parte baixa da cidade. Abri um mapa regional de Tóquio e marquei a área com esferográfica vermelha. Típico bairro de cidade baixa. Linhas férreas, de metro e de autocarros entrecruzavam-se como fios de uma teia tecida por aranha desnorteada. Incontáveis ruas e canais atulhavam a área e agarravam-se à crosta terrestre como rugas em casca de melão. No dia do enterro tomei um autocarro em Waseda. Saí perto do fim da linha e consultei o mapa, que, naquelas condições, me foi quase tão útil quanto o mapa-múndi. Até chegar ao meu destino, eu já tinha perdido a conta dos maços de cigarro comprados em troca de informações. Era uma casa velha de madeira circundada por uma cerca de tabuinhas marrom. À esquerda do portão havia um jardim minúsculo, de utilidade discutível, e a um canto, abandonado, um velho fogareiro portátil de cerâmica com quase quinze centímetros de água de chuva estagnada. A terra do jardim era preta e húmida. Ela tinha saído de casa aos dezasseis anos. Isso podia explicar o clima melancólico do funeral. Estavam presentes apenas os familiares, gente idosa na sua maioria. A cerimónia foi presidida pelo irmão mais velho, ou quem sabe cunhado, um homem aparentando pouco mais de trinta anos. O pai devia andar pela casa dos cinquenta. Era miúdo e usava faixa de luto na manga do terno preto. Em pé ao lado do portão, manteve-se quase imóvel durante todo o tempo. O seu aspecto lembrava asfalto depois que a água da enchente escoa. Conheci-a no Outono de 1969. Eu tinha vinte anos na época, e ela, dezassete. Havia uma pequena cafetaria perto da faculdade onde eu costumava reunir-me com colegas. Não era grande coisa de estabelecimento, mas ali podia sempre tomar um café horroroso ao som de hard rock. Ela sentava-se sempre no mesmo lugar, cotovelos fincados na mesa, absorta na leitura de um livro qualquer. Usava óculos que lembravam aparelho ortodóntico e tinha mãos esqueléticas, mas conseguia ser de algum modo atraente. O seu café estava sempre frio, e o cinzeiro, sempre cheio de pontas de cigarro. As únicas variantes eram os livros. Ora Mickey Spillane, ora Kenzaburo Oe, ora Allen Ginsberg. Não lhe importavam autores ou temas, bastava-lhe apenas que fossem livros, quase sempre emprestados de estudantes que frequentavam o local. Ela os lia vorazmente de início ao fim, como se roesse uma espiga de milho. Naquela época as pessoas emprestavam com prazer, de modo que nunca lhe faltou material para leitura. Eram tempos também do The Doors, dos Stones, dos Byrds, do Deep Purple e dos Moody Blues. Havia certa dose de tensão e instabilidade no ar, dando a impressão de que um bom pontapé seria capaz de deitar abaixo quase tudo. Passávamos os dias bebendo uísque barato, praticando um sexo choço, discutindo sem chegar a conclusão alguma ou emprestando livros uns aos outros. Enquanto isso, a cortina caía rangendo sobre a década de sessenta, de incómoda memória. Esqueci o nome dela. Posso procurar o recorte do jornal e verificar, mas nome é o que menos importa agora. Eu esqueci-o. Só isso. Vez ou outra acontece de me reunir com velhos amigos e de, por acaso, ser ela o assunto da conversa. Ninguém se lembra do nome dela. Dizem, naqueles velhos tempos tinha uma garota que dormia com qualquer um, lembra, como era mesmo o nome dela?, esqueci completamente, eu mesmo dormi com ela algumas vezes, por onde andará agora, ia ser engraçado topar com ela de repente no meio da rua. Era uma vez uma garota que dormia com qualquer um. Eis o seu nome. Estritamente falando, não dormia com qualquer um, é claro. Devia ter os seus critérios. Por outro lado, e objectivamente falando, era também inegável que ela dormia com quase todo mundo. Eu quis saber desses critérios uma única vez, por pura curiosidade. Bem…, disse ela. Trinta segundos de silêncio pensativo se seguiram. Não é que eu aceite dormir com qualquer um, é claro. Alguns me enojam, às vezes. No fundo, talvez eu esteja apenas querendo conhecer as pessoas. Ou talvez seja desse modo que o mundo passe a fazer sentido para mim. Dormindo com homens? A-hã. Foi a minha vez de pensar por instantes. E…, fez sentido, por acaso? Algum, respondeu». In Haruki Murakami, Caçando Carneiros, 1982, tradução de Leiko Gotoda, Prisa Edições, Alfaguara, Editora Objectiva, 2014, ISBN 978-857-962-317-2.

Cortesia de Alfaguara/EObjectiva/JDACT