sexta-feira, 18 de março de 2016

A tia Júlia e o Escrevedor. Mario Vargas Llosa. «A minha teoria erótico-biológica, para além do mais, deixou a tia Julia bem incrédula: acreditava de verdade nessa idiotice? Sou contra o casamento, disse-lhe com o ar mais pedante que consegui»

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«(…) Ao inclinar-me para a beijar, sussurrei ao ouvido da boliviana com toda a ironia do mundo: que boa conquista, Julita., Ela piscou-me o olho e concordou, Durante o almoço, o tio Pâncracio. depois de dissertar sobre a música crioula, na qual era perito, nas festas familiares tocava sempre um solo de cajón, virou-se para ela e, meloso como um gato, contou: a propósito, todas as quintas-feiras à noite actua a Peña Felipe Pinglo, em La Victoria, o coração do crioulismo. Gostarias de ouvir um pouco da verdadeira música peruana? A tia Julia, sem vacilar um segundo e com uma cara de desolação que acrescentava calúnia ao insulto, respondeu apontando para mim: olha que pena. O Marito convidou-me para ir ao cinema. O tio Pancracio curvou-se, com espírito desportivo: cedo a vez à juventude. Depois, quando ele se foi embora, eu achei que ia escapar porque a tia Olga perguntou: a história do cinema era só para se livrar do velho safado? Mas tia Julia corrigiu com ímpeto: nada disso, minha irmã, estou louca para ver a fita do Barranco que é imprópria para senhoritas. Virou-se para mim, que estava escutando como se decidissem o meu destino nocturno e, para me acalmar, acrescentou este primor: não te preocupes com o dinheiro, Marito. O convite é meu. E lá estávamos, andando pela escura ladeira da Quebrada de Armendáriz, pela larga avenida Grau, ao encontro de um filme que, além de tudo, era mexicano e se chamava Mãe e Amante.
O ruim de ser divorciada não é que todos os homens se achem na obrigação de fazer propostas, informou-me a tia Julia. Mas sim que por ser divorciada pensam que podem dispensar o romantismo. Não namoram, não fazem gentilezas, propõem a coisa directamente, às primeiras, com a maior vulgaridade. A mim enoja-me. Então, em vez de me levarem para dançar, prefiro vir ao cinema contigo. Agradeci pela parte que me tocava. São tão burros que acham que toda a divorciada é uma mulher da rua, continuou, sem se dar por achada. E, além disso, só pensam em fazer as coisas. Quando o bonito não é isso, mas sim apaixonarmo-nos, não é verdade? Expliquei para ela que o amor não existia, que era invenção de um italiano chamado Petrarca e dos trovadores provençais. Que isso que as pessoas acreditavam ser uma fonte cristalina de emoção, uma efusão pura do sentimento, era o desejo instintivo dos gatos no cio dissimulado por trás de palavras bonitas e mitos da literatura. Não acreditava em nada disso, mas queria ser interessante. A minha teoria erótico-biológica, para além do mais, deixou a tia Julia bem incrédula: acreditava de verdade nessa idiotice?  Sou contra o casamento, disse-lhe com o ar mais pedante que consegui. Sou partidário do que chamam de amor livre, mas que, se fôssemos honestos, deveríamos chamar simplesmente de cópula livre. Cópula quer dizer fazer as coisas? Ela riu. Mas na mesma hora fez uma cara decepcionada. No meu tempo, os rapazes escreviam acrósticos, mandavam flores para as meninas, precisavam de semanas para se atreverem a dar um beijo. O amor tornou-se uma porcaria com os parvalhões de hoje, Marito.
Tivemos um começo de briga na bilheteria para ver quem pagava a entrada e, depois de suportar uma hora e meia de Dolores del Rio gemendo, abraçando, gozando, chorando, correndo pela selva com os cabelos ao vento, regressámos para a casa do tio Lucho, também a pé, enquanto a chuva miudinha nos molhava o cabelo e a roupa. Então falámos de novo de Pedro Camacho. Tinha a certeza de nunca tinha ouvido falar dele? Porque, segundo Genaro filho, era uma celebridade boliviana. Não, não o conhecia nem de nome. Pensei que tinham passado a perna em Genaro, ou que, talvez, a suposta indústria radioteatral boliviana fosse uma invenção sua para lançar publicitariamente um plumífero aborígene. Três dias depois, conheci Pedro Camacho em carne e osso. Acabava de ter um incidente com Genaro pai, porque Pascual, com a sua incontrolável predilecção pelo atroz, havia dedicado todo o boletim das onze horas a um terremoto em Ispahan. O que irritava Genaro pai não era tanto que Pascual ter deixado para trás outras notícias, para referir, com profusão de detalhes, como os persas sobreviventes aos desmoronamentos eram atacados por serpentes que, ao explodirem os seus refúgios, surgiam à superfície coléricas e sibilantes, mas sim o terremoto ter ocorrido há uma semana. Tive de concordar que Genaro pai tinha razão e desabafei chamando irresponsável a Pascual. De onde havia tirado aquela história requentada? De uma revista argentina. E por que havia feito uma coisa tão absurda? Porque não havia nenhuma notícia de actualidade importante e essa, pelo menos, era divertida. Quando lhe explicava que não nos pagavam para divertir os ouvintes, mas sim para lhes dar um resumo das notícias do dia, Pascual, abanando a cabeça de forma conciliatória, opunha-me o seu argumento imbatível: acontece que temos concepções muito diferentes de jornalismo, senhor Mario». In Mario Vargas Llosa, A tia Júlia e o Escrevedor, 1977, tradução de Cristina Rodriguez, Publicações dom Quixote, 1988, 2008, ISBN 978-846-123-866-8.

Cortesia PdQuixote/JDACT