quinta-feira, 17 de março de 2016

A Carne e o Sangue. Mary del Priore. «… criticavam tais bisonhos e antigos costumes que só se podiam tolerar nesta porção da América e que não estavam mais em uso entre povos civilizados»

Cortesia de wikipedia

A canga de ferro e o trono dourado
«Às cinco da tarde do dia 5 de Novembro de 1817, as fortalezas dispararam os seus canhões: 21 tiros. Fragatas ancoradas na barra replicaram. O cair da tarde iluminou-se, atrasando a noite. As águas escuras transportavam o som de vivas, apitos e gritos. Bandeiras e flâmulas coloridas tremulavam na viração. Girândolas de fogos explodiam no céu, num chuveiro de estrelas. Os sinos das igrejas puseram-se a tocar, espantando as pombas. Nas praias, multidão sem fim. Durante mais de duas horas, o foguetório invadiu o convés das embarcações, somando o seu estrondo ao da artilharia. Palco da festa, o Rio de Janeiro era então considerado um dos portos mais bem localizados do mundo. As facilidades de intercâmbio com a Europa, América, África e Índias Orientais tornavam-no um grande elo entre o comércio das várias regiões do globo. Por influência do Oriente, viam-se por toda parte imensos guarda-sóis para abrigar do calor e mulheres cobertas dos pés à cabeça por capas escuras. Casas caiadas de branco com beirais arrebitados e papagaios de papel no céu também traziam as cores da China e do Japão. Vista do mar, a cidade aninhava-se entre os morros do Castelo e São Bento. Passando o Pão de Açúcar, viam-se o morro da Mesa, assim chamado pela sua forma achatada no cimo, e o Corcovado. A costa, sempre recoberta de vegetação, espreguiçava-se até a bateria do Forte São João. Seguiam-se a encantadora enseada de Botafogo e a extremidade da praia do Flamengo, guarnecida de pequenas chácaras. O tapete de areia branca prolongava-se à beira-mar até o morro de Nossa Senhora da Glória, encimado pela igreja de mesmo nome. A seguir, sóbrias torres identificavam as igrejas de São José, do Carmo e dos Jesuítas. E depois, apinhado de gente, o terreiro do paço. Pouco tempo havia que o Brasil passara a ser a verdadeira sede da monarquia lusitana. Os senhores de terras, plantadores e agricultores ricos, tinham saído do seu exílio, atraídos pelo brilho do porto e do que viria ser a nova corte. Plebeus comuns, a maioria, juntavam-se aos plebeus dotados de algum privilégio ou título de nobreza que formavam a pequena elite colonial com o grupo emergente de ex-escravos ou de seus filhos. Apesar das belezas naturais, tudo era horrivelmente sujo, fétido e abandonado. Cercado de mangues e charcos, o burgo sofria com a falta de água e de higiene. Animais pastavam pelas ruas. Havia capim e lixo em toda parte. O conteúdo dos penicos era esvaziado pelas janelas. Apologistas da europeização, como o padre Luís Gonçalves Santos, mais conhecido como padre Perereca, criticavam tais bisonhos e antigos costumes que só se podiam tolerar nesta porção da América e que não estavam mais em uso entre povos civilizados. De facto, parecia mesmo bisonho o costume de morar em ruas estreitas no meio das quais corria um canal de águas servidas. Ruas também cheias de edifícios, em geral de dois pavimentos e paredes de granito, que tinham o pavimento inferior ocupado pela loja ou armazém; o segundo e o terceiro, [...] pelos aposentos da família para cujo acesso existiam corredores estreitos e compridos, como descreveu o comerciante inglês John Luccok, que desembarcara no Rio em 1808. Focados no cenário arquitectónico, os oficiais prussianos Von Leithold e Von Rago queixavam-se de que o único passeio para os habitantes era uma praça junto ao mar que, pelo traçado dos canteiros, mais parecia uma horta! Impressionava, também, o número de negros, escravos ou livres, dando aos forasteiros que ali passavam a impressão de ter desembarcado na África. Mas não era só de lá que esses negros chegavam, vindos da Costa da Mina, Congo e, mais tarde, Moçambique e Angola. Também negros, escravos ou libertos, vindos da América espanhola e confundidos com trabalhadores livres misturavam-se no labirinto da cidade. Entre eles, ranchos de audaciosos capoeiras cruzavam a Candelária armados de paus e facas, exibindo-se num jogo atlético apesar das penalidades impostas, muitas chibatadas aos escravos que capoeirassem. Carregadores e mulheres ambulantes, ligeiramente vestidas, transportavam toda a sorte de mercadoria na cabeça: frutas, animais vivos, pacotes, feixes de fumo, água potável, roupas sujas e limpas e tigres, isto é, tinas com excrementos. Nesse dia, seguida por uma esquadra, a pesada nau D. João VI fixou ferros quase em frente ao Mosteiro de São Bento, ao lado da ilha das Cobras. Como faróis, as duas torres do edifício velavam sobre a baía. Nas janelas, enfeitadas com sedas de diferentes cores, apinhavam-se monges vestidos de sarja castanha. Aos pés do morro, o cais do Arsenal Real da Marinha fora arranjado com luxo. Até então, ali reparavam-se os navios portugueses e era grande o movimento dos trabalhadores em torno da calafetagem de barcos». In Mary del Priore, A Carne e o Sangue, A imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a marquesa de Santos, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2012, ISBN 978-858-122-050-5.

Cortesia de ERocco/JDACT