terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Judas. O Obscuro. Thomas Hardy. «A redenção, que poderia vir na experiência amorosa, complica-se na divisão entre duas mulheres, Arabella, instintiva e astuciosa, e Sue, parente distante»

Cortesia de wikipedia

«Judas Fawley, típico herói do romance moderno, tropeça em pedra atrás de pedra no seu caminho trágico. Não é um caminho que esquadrinhe o centro do mundo, nem mesmo que esbarre em cenas grandiosas da história. Mais modesto do que o Frédéric Moreau de Flaubert, assumidamente periférico, o personagem de Hardy também experimenta uma educação sentimental marcada pela desilusão, uma sucessão de sonhos esvaziados pela dureza da realidade, nos campos ingleses de Wessex. As aldeias de Dorset, região do interior da Inglaterra que preferia chamar pelo nome medieval, Wessex, não tinham para ele o apelo do exótico, do bucolismo e da tranquilidade. Através do mito da simpática vida comunitária, simples e auto-suficiente, enxergava o meio à paisagem, que soube descrever com minúncia de connaisseur, um campo cada vez mais vazio de camponeses. O apito do trem testemunhava um novo tempo, em que passou a ser impossível mover uma palha sem ouvir a cidade, como anotou o crítico Raymond Williams. Aldeias, povoadas de pequenos artesãos e comerciantes que viviam em função de Londres mostravam uma nova face do interior. Para o pequeno Thomas Hardy, tão bonzinho, na descrição condescendente e equivocada do arguto, mas antípoda, Henry James, o idílio campestre era tudo menos a simplicidade sublime transfigurada aos olhos dos homens urbanos por poetas como Wordsworth. Hardy registou o vazio deixado pelo colapso da explicação cristã do mundo; leitor de Darwin, deixou-se impressionar pela descrição das forças mecânicas e impessoais indiferentes ao homem que tomavam conta da natureza. Some-se a isso uma percepção pessoal da crueldade social escondida na Inglaterra rural vitoriana (também ele teve origem humilde, em família tradicional decadente; seu pai, um pequeno empreiteiro, tinha um status em pouco superior ao de um trabalhador braçal), um aprendizado prático do mundo desencantado do fim de século, e estão dadas as balizas do fatalismo pessimista que movimenta as suas principais histórias. Por isso, mesmo quando mais se aproxima da ficção realista típica do Dezanove, como em Judas, o Obscuro, a moldura trágica sempre prevalece em Hardy. Um dos poucos volumes concebidos longe da pressão do gosto do público dos folhetins, Judas regista o lado cinzento de um drama experimentado pelo autor em versão feliz: a ascensão pela instrução. Ao mesmo tempo, estamos diante de uma história de amor, como quase todos os seus livros, em que, à maneira de Ibsen, Hardy discute os limites de uma instituição fundamental à ordem burguesa: o casamento indissolúvel. A consciência de uma ordem diversa, em que o trabalho não se esgota no cumprimento de tarefas e tem uma qualidade emancipadora, faz com que o protagonista aspire a um mundo espiritualizado que teima em lhe escapar por entre os dedos. Miséria, amor, acaso são forças caprichosas, insondáveis à compreensão humana, que em aparente ajuste frustram seguidos projectos de fuga, demonstrando a Judas o que Hardy parece nos antecipar desde o princípio: uma conspiração do destino, que inclui ter nascido no lugar e momento errados. A cena de abertura simboliza, na partida do professor, as adversidades que Judas enfrentará. Pobre e órfão, o menino que se decepciona com a separação, alimenta uma ambição intelectual em tudo contrariada pelas circunstâncias. O monte da sua vida será uma contínua renúncia e acomodação na mediocridade. A redenção, que poderia vir na experiência amorosa, complica-se na divisão entre duas mulheres, Arabella, instintiva e astuciosa, e Sue, parente distante e alma gémea, pouco convencional, e na incompatibilidade entre as ideias avançadas para a época e a pressão das instituições. A recusa do ritual do casamento não passa sem punições. Os bosques pelos quais, adolescente, Fawley vaga entregando os pães que a tia-avó fabrica, deixando os cavalos à deriva enquanto se distrai tentando decifrar os clássicos com ajuda solitária de uma gramática; o vislumbramento nocturno do alto de um celeiro da vizinha Christminster (na verdade, Oxford), encarnação do refinamento e da espiritualização que Judas quer alcançar, são bons exemplos da imaginação poética, predominantemente visual, que particulariza o ficcionista. Os símiles inesperados associam-se à descrição atenta a detalhes, dão alma ao que seria mero registo acurado; o estilo traz as marcas do respeito quase místico que o interior ainda guarda pelas coisas da cultura letrada e citadina. O seu inglês sisudo e meio canhestro, caracterizado por uma sintaxe retorcida e vocabulário rebuscado, destes que completam sem titubeio as palavras cruzadas. O que poderia ser defeito, é resgatado pelo efeito final, personalíssimo e impressionante, sério sim, mas poético (Hardy, além de romancista, produziu lírica de qualidade), que ganha um colorido especial nas cenas em que reproduz o dialecto dos tipos populares e o burburinho das festas do interior. Em Judas, o Obscuro, ainda que menos frequente, a alegria ruidosa e a sabedoria tradicional na boca da gente simples aparecem representadas em passagens breves, distribuídas aqui e ali. Estão nos conselhos da sra. Edlin, que antevê as consequências funestas do repúdio da velha ordem e lamenta o seu fim, nas conversas de comadres, na multidão que acompanha os festejos em Christminster, nas tabernas em que Arabela trabalha e, no momento de crise, Judas tenta afogar as mágoas. Fazem um contraponto menos melancólico, de luminosidade efémera, ao triste papel que cabe aos homens num mundo sem ordem, sem deuses, sem explicações. Aos olhos de Hardy, são estes momentos de felicidade, mínimos, roubados à vigilância impiedosa da máquina do mundo, que impedem o sem-sentido total da existência humana. Recompensa possível, conferem identidade aos milhões de obscuros de Sísifo que, como Judas, representante alegórico da humanidade, tentam assenhorear-se da sua vida, contra uma natureza hostil, porque aleatória e indiferente». In Thomas Hardy, Jude, The Obscure, Judas, o Obscuro, 1895, tradução de Octávio Faria, Geração Editorial, Colecção Redescoberta, ePub, 1994/1995, CDD 823.

Cortesia de GeraçãoE/ePub/JDACT