segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Rumor Branco. Almeida Faria. «… que fazes na vida?: pintura e política. cabelo crescido, bigode à Pancho Villa, alta estatura, olhos castanhos sob sobrancelhas escuras, queixo grosso, nariz duro, lábios muito finos…»

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III Fragmento
«(…) Hora em que prostitutas entram nos cabarés para se despirem e depois se vestirem distantes do que fazem, é a hora em que, neste lugar, eu sei que não sou eu mas ignoro quem eu seja corpo que tudo une dando e recebendo e aumentando o dom de dar pelo próprio dom da doação e sei que qualquer coisa se abre à evidência de que fomos criados para que nos criássemos, que para nos fazermos fomos feitos e que os homens não nascem mas se fazem, a cada instante se fazem e nisso está a liberdade deles, não em fazer o que se quer, mas o que quer o ser, o que cada um é e não sabemos o que é mas sabemos que é e no poema emerge em cada verso, no furioso puro apelo do poeta a quem vazaram olhos para melhor cantar este poder da humanochimpanzaica condição  mais conhecida por pipapalacaquígrafo homo sapiens, descoberta naqueles casos em que a ciência fabiotética atenua as partes melódicas da prognóetica reminiscência aliás bicanforada, perdão minha senhora mas a moeda é falsa. são horas. chego ao quartel-general do grupo, vejo Kerstin logo, olho num relance a cave toda, abafada e funda cheia de gente que desertou do sol e vive nas trevas, atravesso o espaço livre para dançar, paro no meio do grupo mudo. sento-me em cima duma mesa suja e Growinski interroga-me exabrupto: que fazes na vida?: pintura e política. cabelo crescido, bigode à Pancho Villa, alta estatura, olhos castanhos sob sobrancelhas escuras, queixo grosso, nariz duro, lábios muito finos, as mãos grandes e rudes, a camisola comprida. está de pé a falar, os olhos fixos, faz o elogio de Picesso num tom didáctico empolado. a orquestra toca free jazz, Kerstin cola o corpo ao meu quando dançamos, passo-lhe os braços pela cintura, os outros olham-nos alheios, têm um certo desprezo uns pelos outros e também por si mesmos. gosto de Kerstin de berrante blusa e cabelos rebeldes. a canção acabou, regressamos à mesa, há una nuvem de fumo que as luzes inundam de tons azuis, acendo o meu cachimbo, talvez assim não sinta tanto o cheiro a cinza. atmosfera morna, ar pesado, as paredes abafam, da sombra da cave salta o saxofone, indistintas as mãos movem-se, rostos pálidos olhos apagados pares unidos no mesmo medo informe, idêntico o ritmo repete-se idêntico, os mesmos passos, tudo no lodo lento de rastos, a música morre, pares dispersam, a pista de madeira está vazia na sua cor sem brilho. calma construída de secretos ruídos num levedar da massa de instantes sufocados, uma lufada de ar, alguma coisa vai mudar, um grito de trompete acorda o torpor da cave. onda de sons desfeita em nada, corpos de pé apanhados na vaga, agitam-se convulsos, dança possessa de si mesma. Kerstin insiste em sentar-se sobre os meus joelhos, sobre o meu sexo, beija-me a barba, Growinski está contando que se suicida quando conhecer a beleza porque depois desse instante nada pode ser belo, nada há a esperar deste mundo de merda, Anders recita os seus satíricobscenos poemas de momento: na primavera incharam-se os jardins de novas flores e velhos pederastas de novos estupores e velhas madrastas e vieram todos os novos e velhos insectos infectos e não infectos até um novo modelo de barata feito na américa só sucata e outros engraçados bichos habituais como os pardais os cardeais os comensais os generais e ainda mais dois animais para os tanques trutas para os bancos prostitutas e este lugar animado é muito frequentado usado e abusado por sopeiras e magalas e peixeiras e marechalas, outro, cujo nome esqueci, um tipo de olhos vítreos, começa do seu canto cantando: conheci por acaso um gajo no teatro tinha um ar vago muito pálido cabelo louro-palha e à saída vi-o entrar num largo carro negro estofado de negro com motorista negro fardado de negro mas de luvas brancas mais tarde encontrei-o vezes várias no café o mesmo olhar desamparado até que uma tarde veio inesperado sentar-se à minha mesa como se tivesse contas a dar-me começou por dizer que se chamava Krauss e era rico mas apesar disso sempre fora tímido e ao contrário do que se julgava a timidez aumentou com a idade davam-lhe passeios estadas no estrangeiro arranjavam-lhe amigas festas farras tudo em vão a tudo tinha horror tudo lhe era estranho vivia aterrorizado por um peso tremendo e um perigo pendente…» In Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.

Cortesia de Caminho/JDACT