sábado, 16 de janeiro de 2016

Poesia em Sábado. Vida Breve. Fernando Pessoa/Álvaro de Campos. «Quem me dera que eu fosse o pó da estrada e que os pés dos pobres me estivessem pisando… Quem me dera que eu fosse os rios que correm»

Cortesia de wikipedia

Ode Marítima
«Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
olho e contenta-me ver,
pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
aqui, acolá, acorda a vida marítima,
erguem-se velas, avançam rebocadores,
surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
com o paquete que entra,
porque ele está com a Distância, com a Manhã,
com o sentido marítimo desta Hora,
com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
como um começar a enjoar, mas no espírito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
e dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É, sinto-o em mim como o meu sangue
inconscientemente simbolico. terrivelmente
ameaçador de significações metafísicas
que perturbam em mim quem eu fui...


Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
e se repara de repente que se abriu um espaço
entre o cais e o navio,
vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
uma névoa de sentimentos de tristeza
que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
como a primeira janela onde a madrugada bate,
e me envolve como uma recordação duma outra pessoa
que fosse misteriosamente minha.
Ah, quem sabe, quem sabe,
se não parti outrora, antes de mim,
dum cais; se não deixei, navio ao sol
oblíquo da madrugada,
uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora,
do mundo exterior como eu o vejo
raiar-se para mim,
um grande cais cheio de pouca gente,
duma grande cidade meio-desperta,
duma enorme cidade comercial, crescida, apopléctica,
tanto quanto isso pode ser feito fora do Espaço e do Tempo?»
[…]
Poema de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, in ‘Ode Marítima
ISBN 972-889-278-0

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