domingo, 24 de janeiro de 2016

O Cavaleiro de Olivença João Paulo O Costa. «Alta, cabelo todo branco apanhado num carrapito, com um xaile negro pelas costas, tinha uns óculos na ponta do nariz e andava amparada num bordão. Os seus olhares cruzaram-se…»

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O amigo da rainha
«(…) Aquele desenho servira de base para o grande quadro que estava colocado sobre a lareira da sala principal. Era pintura que mostrava Vasco Melo na sua armadura com o elmo das penas vermelhas e fora debuxada por Frederico, o mestre pintor dinamarquês, a mando d’el-rei. Era um trabalho perfeito e quem o apreciava afirmava que a figura parecia estar viva. Antónia, porém, sempre o achara insuficiente, embora a culpa não fosse do artista, na verdade, era um quadro imperfeito, porque não mostrava os movimentos irreprimíveis do corpo, e sobretudo a permanente trepidação de seu nariz. Vasco experimentara uma vida intensa e agitada, e não havia imagem que pudesse retratar fielmente o seu contínuo frenesim. Passado algum tempo, abriu a caixa e ficou a olhar para os bonecos de pano, matutando. Assim estava quando a criada assomou à porta e anunciou com ar desgostoso: senhora, tendes uma visita. Uma mulher tão velha quanto Antónia entrou na câmara. Alta, cabelo todo branco apanhado num carrapito, com um xaile negro pelas costas, tinha uns óculos na ponta do nariz e andava amparada num bordão. Os seus olhares cruzaram-se afectuosamente e as duas sorriram.
Já ouvistes os sinos? Sim, e já percebi que a notícia da rainha vos avivou memórias antigas. Assim é, minha amiga. Mandei preparar uma infusão de tília. Agradecida. Será que a rainha Joana ainda se lembrava do nosso Vasco? Dizem que endoidou há muito, mas mesmo os desmiolados guardam memórias e sua ligação era fortíssima. Eu própria o testemunhei antes e depois da morte de Vasco. Estes bonecos estiveram convosco em Tordesilhas? Matilde emocionou-se, vendo os fantoches que julgara perdidos há dúzias de anos, e suas mãos apressaram-se a tocá-los. Um a um espreitou-os com os olhos a brilhar. Não sabia que os tinha... Foi Tristão que mos deu, antes de partir para a Índia contigo e o Gonçalo. Estiveste por aquelas partes mais de vinte anos, e quando voltaste, não me alembrei de tos mostrar. Estavam esquecidos numa arrecadação, e só os trouxe para aqui há pouco tempo. Matilde continuava a observar os bonecos de pano.
Foi Vasco quem lhes chamou fantoches. Mas eram mais que estes. Estão aqui o elefante, o macaco, a cobra..., metíamos sempre medo com a cobra, a zebra, o papagaio e o hipopótamo. O leão perdeu a juba e não cheguei a arranjá-1o. Pelos vistos Tristão não o guardou. Ah, pois, falta também a girafa, Vasco deu-a à rainha Joana aquando de nossa representação. Será que ela guardou o boneco? Fui eu que o cosi, como estes todos. Fiz a girafa depois da viagem do Tristão à Índia. Também fiz o ganda... O rinoceronte?  Esse mesmo. Recordai-vos que foi uma grande novidade quando chegou o primeiro desses bichos a Lisboa.
Se me lembro. Foi no ano em que o nosso Vasco faleceu… Embora se conhecessem há mais de quarenta e cinco anos, Antónia não estava a par de todos os detalhes da vida de Matilde. Sabia que ela trabalhara para Vasco, mas desconfiava que a história daquela mulher era muito mais complexa do que dizia. Matilde vivera uma vida de segredos e não os abandonara nem depois de sua aposentadoria, mas Antónia tinha a esperança que com o passar do tempo ela se distraísse e revelasse pormenores nunca antes confessados. Sempre andaste de terra em terra com estes bonecos, não foi?» In João Paulo Oliveira Costa, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2012, 978-989-644-184-5.

Cortesia de CL/TDebates/JDACT