sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O Caso Tutankhamon. Christian Jacq. «O Egipto fascinava-o; não tinha ultrapassado o homem, integrando-o no colossal e construindo templos à medida do universo? Contudo, tinha evitado a terra dos faraós…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«George Edward Stanhope Molyneux Herbert, visconde de Porchester, chamado Porchey pelos seus raros íntimos e considerado pelos invejosos como o futuro Lord Carnarvon, deu um soco na cara do marinheiro grego que recusou obedecer às suas ordens. A bordo do seu iate Afrodite, era o único patrão e não admitia que se lhe atravessassem no caminho, mesmo que uma violenta tempestade semeasse o pânico no meio da tripulação. O grego levantou-se atordoado. O seu cozinheiro está tramado... faria melhor em tomar conta do leme. Uma crise de apendicite não é uma condenação à morte. Deveria saber, meu amigo, que a Afrodite é uma deusa do mar; durante a operação, entrego-lhe o barco e a tripulação. Desdenhando do incrédulo, Porchey desceu ao seu camarote onde instalou o doente; estimava muito aquele cozinheiro brasileiro, contratado por ocasião da sua última volta ao mundo. O homem torcia-se com dores. Na coberta, a maioria dos marinheiros tinha-se ajoelhado e rezava, Porchey detestava aquele género de manifestações, característico de uma falta de autodomínio. Quando aprendeu a navegar no Mediterrâneo, em frente da vivenda que seu pai possuía em Porto Fino, na Riviera italiana, o visconde Porchester nunca apelara para o Todo-Poderoso. Ou vogava sozinho, ou se afogava sozinho, sem importunar uma assembleia ocupada em tarefas mais importantes do que a assistência a um navio em perigo. Deu a beber, ao cozinheiro, metade de uma garrafa de um excelente uísque, depois sentou-se ao piano e tocou as Invenções a duas vozes, de João-Sebastião Bach. A mistura de álcool com aquela música serena acalmava o paciente; se não sobrevivesse, partiria com derradeiras sensações de qualidade. Antes de morrer, a mãe de Porchey tinha exigido dele que, de acordo com a educação que recebera no castelo de Highclere, não visse nem ouvisse nada de ordinário nem de vil. Ao preparar-se para abrir a barriga de um brasileiro, que devia ter um ou dois crimes na consciência, o visconde desculpou-se junto da alma da sua genitora. O doente, com o olhar febril, ousou perguntar: Já... já alguma vez operou? Uma boa dúzia de vezes, meu amigo, e sem nenhum fracasso. Descontraia-se e tudo correrá bem. Grande leitor, falando o inglês do Trinity College de Cambridge, o alemão, o francês, o grego, o latim e compreendendo alguns idiomas raros da bacia mediterrânica, Porchey tinha lido, de facto, manuais de cirurgia e tinha ensaiado mentalmente uma operação ao apêndice, pesadelo dos navegadores que partissem para travessias longas. Fora por isso que se munira de um estojo cirúrgico digno de um profissional. Feche os olhos e pense numa boa refeição ou numa mulher bonita. Um sorriso brejeiro dilatou os lábios grossos do cozinheiro. Porchey aproveitou aquele instante de fraqueza e atingiu-o com uma marretada na nuca. Algumas rixas nos bares escusos de Cabo Verde e das Antilhas tinham-no ensinado a aperfeiçoar aquela técnica de anestesia. Operou com mão segura, pensando na epidemia de sarampo que quase o levara; à guisa de remédio, borrifavam-no com água gelada a fim de fazer baixar a febre. Em Eton, o tratamento não era nada melhor; a partir dos primeiros segundos, o visconde tinha detestado os professores pretensiosos, além de cheios de um saber inútil. Trabalhava à sua maneira e ao seu ritmo, indiferente às notas e às sanções; era por isso que o classificavam de preguiçoso, ao passo que desenvolvia um formidável poder de concentração e uma total independência de pensamento. Coleccionador de selos, de chávenas de porcelana, de gravuras francesas e de serpentes em boiões, aborrecia-se profundamente com a leitura de clássicos, quer se tratasse de Demóstenes, o maçador; de Séneca, o desmancha-prazeres ou de Cícero, o toleirão; no Trinity College tinha, contudo, encontrado uma ocupação apaixonante: restaurar as madeiras à sua custa. O director, escandalizado, tinha-se queixado a seu pai da atitude intolerável de um membro da velha aristocracia terrena, guardiã dos valores e da tradição, que Porchey espezinhava com satisfação. Ao jovem nobre, desportista consumado, restava apenas descobrir o mundo, descobrir a África do Sul, a Austrália e o Japão, passar de um continente ao outro em busca de um ideal que lhe fugia. Quando a existência lhe parecia muito aborrecida, mergulhava nos livros de história; a antiguidade atraía-o, por causa do seu carácter grandioso, tão oposto à mentalidade pequeno burguesa em que a Europa se enterrava. O Egipto fascinava-o; não tinha ultrapassado o homem, integrando-o no colossal e construindo templos à medida do universo? Contudo, tinha evitado a terra dos faraós como se um receio respeitoso, pouco frequente nele, o impedisse de penetrar em território desconhecido. O visconde examinou o seu trabalho com satisfação. Nada mal... nada mal mesmo. Não juro que saia bem, mas o manual estava correcto; decididamente, nada vale um bom livro. Aproximava-se a hora do jantar. O visconde mudou de roupa, optando por um casaco branco e umas calças de flanela cinzenta; não esqueceu o boné de capitão e tornou a subir à coberta onde a tripulação continuava a rezar no meio da tempestade. Deus é bom observou o aristocrata. O Afrodite atravessou aquela pequena borrasca e ninguém caiu à água. Vários marinheiros se precipitaram para junto dele. Calma, senhores. O nosso cozinheiro está agora livre do seu incómodo apêndice; provavelmente, não estará em estado de preparar as refeições e teremos de nos desembaraçar como pudermos até à próxima escala. Que este incidente não os impeça de voltarem aos seus postos. Ao leme do iate, o herdeiro dos Carnarvon tinha uma postura distinta. Com a fronte alta e larga, coroada por uma cabeleira quase ruiva, o nariz de boa raça, o bigode cortado na perfeição, o queixo bem marcado, tinha o rosto de um conquistador, partindo para o infinito. Apenas Porchey sabia que a imagem enganava; teria, de boa vontade, delapidado uma parte da sua herança para dar um sentido à sua vida. A inteligência, a cultura, a fortuna, a possibilidade de fazer o que lhe apetecia, como lhe apetecia... nada disso lhe destruía o sentimento de ser vazio e inútil. O grego berrou. O cozinheiro está vivo! Eu vi, abriu os olhos! O visconde encolheu os ombros. Eu só tenho uma palavra, meu caro. Não tinha prometido salvá-lo?» In Christian Jacq, L’Affaire Toutankhamon, O Caso Tutankhamon, tradução de Maria Carlota Guerra, Bertrand Editora, 1998, ISBN 972-250-750-8.

Cortesia de wikipedia e jdact