quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O Anjo dos Esquecidos. Heinz Konsalik. «Existem regiões destas em toda a parte: na bacia central do Amazonas, no norte do Canadá, nas vertentes tibetanas do Himalaia e no mar de areia incandescente do Gobi…»


jdact e wikipedia

«Às dez horas e vinte e sete minutos um pequeno avião pousava no aeroporto da selva de Homalin, no norte da Birmânia. Era uma avioneta velhíssima e de aspecto muito frágil, pintada de encarnado vivo. O piloto que o conduzia devia ser um homem muito corajoso, pois voar num objecto como aquele sobre florestas, serras, correntes e pântanos ainda não explorados, pressupunha uma grande segurança, ou simplesmente a proverbial calma asiática e a certeza de que a vida mais tarde ou mais cedo terá que acabar, mas que a ninguém é dado escolher a maneira de morrer. O pequeno aparelho de quatro lugares dançou sobre a pista de erva, um miserável aeródromo tão acidentado como uma tábua de lavar a roupa. Tinha sido construído no meio da selva e ainda lhe pertencia, pois logo voltava a transformar-se nela por todos os lados. As rodas tocaram o solo, fazendo estremecer o avião que rolou mais um pouco, deu uma volta e ficou então parado no meio do campo com o motor ainda a roncar. A hélice, de vermelho laçada, ficou parada em posição horizontal. Mal os roncos do motor pararam, logo se abriu a porta da cabina. Duas malas foram atiradas para o chão e um homem saltou logo atrás delas, espreguiçando-se como se até àquele momento tivesse viajado dobrado em dois. Depois encostou-se à fuselagem do aparelho, limpando com a manga o suor da testa. Ninguém estava à sua espera. Só o calor húmido e podre da selva, que cortava a respiração, veio ao seu encontro. Era um homem de quem antes se teria dito: é um tipo formidável. Mas pouco ou nada restava desse homem. Era de estatura média, de ombros largos e cabeça cheia de cabelos castanhos-escuros, já entremeados com brancas. Com os olhos de um azul acinzentado olhava o que o rodeava com uma expressão cheia de asco. Quando andava, os ombros largos curvavam-se um pouco para a frente e o corpo começava a gingar. Tinha aquele andar típico do marinheiro que parece querer acompanhar o baloiçar dos barcos ou os movimentos da ondulação.
Todos deveriam saber onde fica Homalin. É um ninho de porcaria no extremo norte da Birmânia, entre a Índia e a China, num sítio onde a criação do mundo não foi além do sétimo dia. Existem regiões destas em toda a parte: na bacia central do Amazonas, no norte do Canadá, nas vertentes tibetanas do Himalaia e no mar de areia incandescente do Gobi, mas aqui, na selva de Homalin, a pergunta subsistia realmente: como é que os homens que aqui vivem ainda não perderam o juízo? Uma nuvem de putrefacção invisível, mas de cheiro muito intenso, cobria a região: cheiro como se fosse bolor em evaporação, cheiro a podre de um enorme monte de estrume. O piloto desceu do avião. Era um birmane de idade indefinida. Vestia uma bata branca e um boné também branco, com uma pala verde de material sintético. Encostou-se taciturno à asa esquerda do avião, utilizando-a como secretária, e registou no diário de bordo o relatório da aterragem: Homalin, dez horas e vinte e sete minutos. Voo normal. Nenhuns acontecimentos imprevistos. O passageiro, Reinmar Haller, foi entregue. Voo de regresso após abastecimento... Haller olhou em volta.
Numa das extremidades do aeródromo estavam dois barracões, únicos indícios de que naquele ermo viviam seres humanos. Porque é que tinham construído este aeroporto era uma das muitas incógnitas que se punham a respeito daquela região. Não tinha qualquer importância estratégica, mas, no entanto, entre aqueles edifícios baixos estava hasteada uma bandeira birmana e à sombra das árvores estavam estacionados alguns jipes pintados de verde. Para além disto nada mais se mexia. Sem contar com uns ligeiros sons vindos do motor desligado, que se pareciam com a respiração final dum doente com pneumonia, o silêncio era total. Um silêncio opressivo num enorme túmulo verde e abafante. Aqui o homem torna-se pequeno e insignificante como um mosquito, pensava Haller saindo da sombra da fuselagem do avião. Pôs a mão direita em pala sobre os olhos e olhou na direcção dos barracões. A suspeita de que este pedaço de terra, arrancado à selva só tinha sido feito para aqui se descarregar a escória da Humanidade tornou-se mais forte. Mas esperara ele outra coisa?
Já devia ter ficado de sobreaviso quando em Rangum, depois de ter aceite o posto de médico que tinha ficado vago, o ministro da Saúde, um homenzinho alegre e gordo com grandes óculos lhe tinha dito: doutor Haller, sentimo-nos muito satisfeitos por termos conseguido uma pessoa da sua capacidade para este cargo. Ninguém examinara os seus papéis, nem os seus diplomas. Também ninguém se tinha interessado pelo que Haller fizera nos últimos anos. Bastara que ele comprovasse ser um médico alemão e estivesse disposto a voar para o norte, para trabalhar como médico permanente no hospital Jesus na Cruz, que ficava num local chamado Nongkai. Devia ser um local muito pequeno, pois Haller não o conseguiu localizar em nenhum mapa, embora até à presente data isso lhe tivesse sido bastante indiferente. Só quero trabalhar, pensava ele, estar de novo à cabeceira dos doentes, ajudar seres humanos, conseguir provar mais uma vez que ainda sou alguém, apesar de tudo aquilo que ficou para trás... Ser novamente um médico! Por esta chance, Nongkai até podia ficar na Lua!» In Heinz Konsalik, Engel der Vergessenen, 1974, O Anjo dos Esquecidos, tradução de Coração Carvalho, Círculo de Leitores, 1978.

Cortesia de CLeitores/JDACT