domingo, 10 de janeiro de 2016

O Amor nos Tempos de Cólera. Gabriel Garcia Márquez. «Nada de anormal, disse. São as suas últimas vontades. Era uma meia verdade, mas eles acreditaram…, ladrilho solto do pavimento e ali encontraram um caderno de contas, muito usado, onde estavam as chaves…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Quando o encontrar preste bem atenção, disse ao praticante: costumam ter areia no coração. Em seguida falou com o comissário como quem fala a um subalterno. ordenou-lhe que desse um jeito em todas as instâncias para que o enterro se realizasse nessa mesma tarde e com o maior sigilo. Disse: eu falo depois com o presidente. Sabia que Jeremiah de Saint-Amour era de uma austeridade primitiva, e que ganhava com a sua arte muito mais do que carecia para viver, de modo que em algumas das gavetas da casa devia haver dinheiro de sobra para os gastos do enterro. Mas se não o acharem, não importa, disse. Eu encarrego-me de tudo. Mandou que se dissesse aos jornais que o fotógrafo tinha morrido de morte natural, embora achasse que a notícia não lhes interessava de modo nenhum. Disse: se for necessário, falo com o governador. O comissário, um empregado sério e humilde, sabia que o rigor cívico do mestre exasperava até os seus amigos mais chegados, e estranhava a facilidade com que saltava por cima dos trâmites legais para apressar o enterro. Só não acedeu em falar com o arcebispo para que Jeremiah de Saint-Amour fosse sepultado em terra consagrada. O comissário, mortificado com a sua própria impertinência, tratou de se desculpar. A minha ideia é que este homem era um santo, disse. Era algo ainda mais raro, disse o doutor Urbino: um santo ateu. Mas esses assuntos a Deus pertencem. Remotos, do outro lado da cidade colonial, se ouviram os sinos da catedral chamando à missa solene. O doutor Urbino repôs os óculos de meia-lua com armação de ouro e consultou o relógio da corrente, que era quadrado e fino, a sua tampa abria-se com uma mola: estava a ponto de perder a missa de Pentecostes. Na sala havia uma enorme máquina fotográfica sobre rodas como as dos jardins públicos, e o telão de um crepúsculo marinho pintado com tintas artesanais, e as paredes estavam forradas de retratos de crianças em suas datas memoráveis: a primeira comunhão, a fantasia de coelho, o aniversário feliz. O doutor Urbino tinha visto o revestimento paulatino dos muros, ano após ano, durante as cavilações absortas das tardes de xadrêz, e havia pensado muitas vezes com um latejar de desolação que nessa galeria de retratos casuais estava o germe da cidade futura, governada e pervertida por aqueles meninos incertos, e na qual já não restariam sequer as cinzas da sua glória. Na secretária, junto a um pote com vários cachimbos de lobo-do-mar, estava o tabuleiro de xadrêz com uma partida inconclusa. Apesar da sua pressa e de seu ânimo sombrio, o doutor Urbino não resistiu à tentação de estudá-la. Sabia que era a partida da noite anterior, pois Jeremiah de Saint-Amour jogava todas as tardes da semana e pelo menos com três adversários diferentes, mas chegava sempre até ao final e guardava depois o tabuleiro e as pedras na sua caixa, e guardava a caixa numa gaveta da secretária. Sabia que jogava com as peças brancas, e aquela vez era evidente que ia ser derrotado sem salvação em quatro jogadas mais. Se tivesse sido um crime, aqui haveria uma boa pista, disse a si mesmo. Só conheço um homem capaz de compôr esta emboscada de mestre. Não teria podido viver sem averiguar mais tarde o motivo porque aquele soldado indómito, acostumado a se bater até à última gota de sangue, havia deixado por terminar a guerra final da sua vida. Às seis da manhã, quando fazia a última ronda, o guarda-nocturno tinha visto o letreiro pregado na porta da rua: entre sem tocar e avise a polícia. Pouco depois acudiu o comissário com o estudante, e ambos tinham revistado a casa em busca de alguma evidência contra o bafo inconfundível das amêndoas amargas. Mas nos breves minutos que durou a análise da partida inconclusa, o comissário descobriu entre os papéis da secretária um envelope dirigido ao doutor Juvenal Urbino, e protegido por tantos selos de lacre que foi necessário despedaçá-lo para tirar a carta. O médico afastou a cortina preta da janela para ter melhor luz, lançou primeiro um olhar rápido às onze folhas escritas dos dois lados com uma caligrafia caprichada, e logo que leu o primeiro parágrafo compreendeu que tinha perdido a comunhão de Pentecostes. Leu com a respiração acelerada, voltando atrás em várias páginas para retomar o fio perdido, e quando terminou parecia regressar de muito longe e de muito tempo. O seu abatimento era visível, apesar do esforço que fazia para ocultá-lo: tinha nos lábios a mesma coloração azul do cadáver, e não pôde dominar o tremor dos dedos quando voltou a dobrar a carta e a guardá-la no bolso do colete. Então lembrou-se do comissário e do médico jovem, e sorriu aos dois das brumas do seu abatimento. Nada de anormal, disse. São as suas últimas vontades. Era uma meia verdade, mas eles acreditaram, porque ele lhes mandou levantar um ladrilho solto do pavimento e ali encontraram um caderno de contas, muito usado, onde estavam as chaves para abrir o cofre-forte. Não havia tanto dinheiro como pensavam, mas havia de sobra para os gastos do enterro e para saldar outros compromissos menores. O doutor Urbino já estava então consciente de que não conseguiria chegar à catedral antes do Evangelho. É a terceira vez que perco a missa de Domingo desde que tenho uso da razão, disse. Mas Deus entende. Preferiu por isso demorar mais uns minutos para deixar todos os pormenores esclarecidos, embora mal pudesse suportar a ansiedade de compartilhar com a sua esposa as confidências da carta. Comprometeu-se a avisar os numerosos refugiados do Caribe que viviam na cidade, caso quisessem render as últimas homenagens a quem se havia comportado como o mais respeitável de todos, o mais activo e radical, mesmo depois de se tornar demasiado evidente que havia sucumbido à sedimentação do desencanto. Também avisaria os seus parceiros de xadrêz, entre os quais havia tantos profissionais insignes como artesãos obscuros, e a outros amigos menos assíduos, mas que talvez quisessem assistir ao enterro. Antes de conhecer a carta póstuma tinha resolvido que ele era o primeiro, mas depois de lê-la não estava mais seguro de nada». In Gabriel Garcia Márquez, O Amor nos Tempos de Cólera, 1985, Editora Record, 2011, ISBN 978-850-102-872-3.

Cortesia de ERecord/JDACT