terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Jaime Cortesão. Crónicas Desaparecidas, Mutiladas e Falseadas. «… uma nova direcção nos Descobrimentos, quer dizer, para ocidente do Atlântico, fora para o autor a razão divisória oculta entre as duas épocas navegadoras»

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«(…) Quanto ao número de cativos trazidos para o reino, Azurara promete referi-lo mais adiante, como com efeito vem a fazer no fim da obra, mas abrangendo então a mais os anos que vão até ao fim de 1448. Daqui é lícito inferir que daquela data por diante, isto é, de 1446, qualquer circunstância marcava uma época nova na obra do infante Henrique, e no que expressamente tocava aos descobrimentos. Se rebuscarmos nos restantes capítulos, não encontramos, todavia, nada justifique esse balanço final referido àquela data. Notemos já que, fazendo o reconto de todos os navios que foram às novas terras descobertas, em vez de 51 encontramos 53. Mas, como Azurara se refere expressamente a caravelas, tirando da soma pelo menos uma barca, dois varinéis, dois navios e uma fusta, aquele número fica reduzido a 47. Além disso também na cronologia das viagens até aquela data se diria que há soluções de continuidade. De 1443 até ao começo de 1446, o relato da Crónica passa duma viagem para outra sem especificar a data claramente, dizendo, tentando aquele ano, ou referindo o dia e o mês, e ainda factos sincrónicos, como se anteriormente o ano ficasse declarado.
Em cronista tão minucioso aquele erro de soma e esta obscuridade cronológica, quando é certo que nos outros passos do relato ele se mostra por demais solícito em fazer notar as passagens dum ano a outro, dão direito a supor que exista qualquer lacuna na série das viagens até aquela data realizadas. Mais adiante veremos se há motivos sérios para crê-lo. Analisemos agora a parte da Crónica que imediatamente continua o balanço das caravelas enviadas e das léguas percorridas. Observará, que imediatamente a seguir a este capítulo em Azurara implicitamente fecha uma época navegadora, ele começa a falar sucessivamente do descobrimento das Canárias, Madeira, Porto Santo e Deserta, e se refere a algumas ilhas dos Açores. Dir-se -ia assim, relacionando o estranho seguimento duns e dos capítulos restantes, que uma nova direcção nos Descobrimentos, quer dizer, para ocidente do Atlântico, fora para o autor a razão divisória oculta entre as duas épocas navegadoras. Mas é certo que todas as ilhas a que se refere Azurara foram descobertas antes de 1446 e desde o fim desse ano até ao fim de 1448, último a cujos feitos se refere a Crónica, a darmos crédito a Zurara, por tal forma diminuiu a actividade descobridora, que o cronista refere unicamente três capítulos a esses dois anos, sem que qualquer das expedições relatadas seja propriamente de descobrimento. Poder-se-ia assim alegrar que a ausência de avanços exploradores bastava a justificar aquele balanço de Azurara. Mas ainda depois disso, e antes daqueles três capítulos, isto é, durante 1446, ele relata a segunda viagem de Álvaro Fernandes, cujo êxito explorador, como nota o cronista, excedeu em extensão e alcance todas as anteriores. Há, pois, a acrescentar ao mistério daquela divisão essa inexplicável pouquidade nos feitos relatados durante os últimos dois anos a que se refere a Crónica». In Jaime Cortesão, A Expansão dos Portugueses no Período Henriquino, Portugália Editora, Lisboa 1965.

Cortesia de PortugáliaE/JDACT