quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Em Convívio com os Clássicos. Pina Martins. Aires A. Nascimento. «… guardava esse exemplar em grande honra e escreveu as razões do apreço que lhe devotava, quando elaborou as memórias da sua biblioteca em Histórias de Livros para a História do Livro»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Quem algum dia teve o privilégio de ser recebido na biblioteca pessoal de José Vitorino Pina Martins, na Rua Marquês da Fronteira, foi possivelmente surpreendido pela revelação de um pequeno livro, de encadernação oitocentista e cor vermelha, guardado em caixa forrada a veludo da mesma cor: nada menos que a edição de Horácio saída em 1501 dos prelos de Aldo Manúcio, adquirida em Paris a um antiquário, André James, grande erudito, especialmente atento às novidades do mercado livreiro e particularmente lúcido em reconhecer e identificar raridades de origem portuguesa. Foi este exemplar dispensado por ele a José Vitorino, a título de favor e amizade, por uma pequena fortuna, de nada menos que 80 000 francos franceses (em moeda antiga, cerca de 2 500 contos, ou sejam 12 500 euros). Trata-se de edição aldina, que se serve do elegante tipo cursivo inventado por Aldo e desenhado por André Grifo; é a segunda obra de autores clássicos em formato de bolso (manual) planeado por Aldo e por ele lançado a público em 1501: depois do seu mítico Virgílio, de Abril, Horácio é de Maio; segue-se Petrarca, em Julho; Juvenal e Pérsio, em Agosto; Marcial, em Dezembro. A edição é considerada uma das dez mais raras das aldinas: recentemente, um antiquário apresentava para venda um exemplar ao preço de 27 374,00 USD (19 000,00 EUR). O exemplar faz parte da Biblioteca Pina Martins, no Centro de História do ex-Banco Espírito Santo, em Lisboa, Praça do Comércio, para onde transitou a Biblioteca reunida pelo seu proprietário, por generosa e lúcida decisão do Presidente do Conselho de Administração do ex-BES, Ricardo Salgado, quando solicitado pelo Presidente da Academia das Ciências de Lisboa a realizar a aquisição daquela Biblioteca para evitar que ela entrasse em deriva de efeitos imprevisíveis quanto à sua conservação.
Pina Martins guardava esse exemplar em grande honra e teve oportunidade de escrever as razões do apreço que lhe devotava, quando elaborou as memórias da sua biblioteca em Histórias de Livros para a História do Livro. O enlevo consagrado a este exemplar do texto de Horácio tê-lo-ia ouvido o visitante da biblioteca da própria voz do seu proprietário, pois com ele costumava iniciar a visita. No livro, ficou uma interpelação que define uma vida; pergunta J. V. Pina Martins: … já algum dia experimentaste, caro leitor, como é diferente ler uma poesia de Horácio, ou de Virgílio, ou de Petrarca, por um livro mal encadernado e por um exemplar de edição raríssima encadernado por um grande artista? (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007) A resposta não vem enunciada no livro; compreende-se: há sensações e sentimentos intraduzíveis, para os quais as palavras são supérfluas ou correm o risco de (entre)cortar o enlevo; no modo interrogativo, porém, fica patente que há novidades que apenas cada um pode experimentar e que, relativamente a uma edição modelar, persistem afectos tanto mais profundamente acalentados quanto mais se percebe o significado cultural desse livro, depois de serem escrutinadas as razões das escolhas do editor e serem conhecidos os efeitos decorrentes do seu trabalho (na edição de Juvenal, também em 1501, Aldo explica a seu amigo Cipião Carteromaco: preparámos e agora damos a público as Sátiras de Juvenal e Pérsio num formato deveras pequeno de tal maneira que possa ser mais facilmente tomado na mão e aprendido de cor; para não falar em ser lido, por quem quer que seja; as fontes tipográficas de Aldo para os formatos in 8º haviam sido desenhadas pelos calígrafos Pompónio Leto e Bartolomeu Sanvito e foram moldados por Francesco Griffo, de Bolonha).
Havia afecto profundo àquela edição renascentista, que era uma das mais valiosas do de quantas se perfilavam nas estantes da sua biblioteca: esse afecto exprimia-o Pina Martins em modo de reciprocidade, pois (confidenciava) os grandes autores e as melhores edições procuram aqueles que os amam. Nesse universo cabiam sobretudo as edições aldinas que revisitava com frequência: entre elas o Iamblicus, impresso em 1497 e o In Calumniatorem Platonis, de Bessarion, publicado por Aldo em 1503; perseguira também o Plato de 1513, em que o mesmo editor se dirigia a Leão X e, por entre o louvor das letras (que só a paz permitia assegurar), comparava a novidade da imprensa com a gesta que os Portugueses estavam a realizar nas Índias». In Aires A. Nascimento, Pina Martins Em Convívio com os Clássicos, Comunicação apresentada à Classe de Letras, Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Letras, Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, 21 de Janeiro de 2010.

Cortesia de ACiênciasLisboa/JDACT