domingo, 24 de janeiro de 2016

A Filha do Cabinda. Alfredo Campos. «Ficavam-lhe os afagos de um pai extremoso e os carinhos do negro afeiçoado; mas que valia tudo isso? Que valia a gota d’água para tão grande sede? O átomo em face da imensidade desfeita? O negro…»

Cortesia de wikipedia

«A filha do Cabinda é formosa como a visão de um sonho celeste; meiga como o canto do sabiá, pousado nos galhos do cajueiro, e ingénua como a virgem da inocência. O Cabinda é negro, e negro de raça fina, mas é branca a sua filha, e filha, porque o velho escravo quer muito à senhora moça, que ele beijava e embalava no seu colo, quando era pequenina. Revê-se nela, e nela se mira doido de afeição o pobre negro, e tanto a gravou na ideia, tanto a traz no coração, que chega até a esquecer-se do trabalho, sujeitando-se às repreensões do seu senhor, para, insensivelmente, se entregar a cismar nela, que é tão bondosa, tão meiga e tão carinhosa para ele; nela, que, por uma destas ilusões, destas miragens, destas doidices, de um grande afecto e de uma viva simpatia, chega a julgar realmente a sua filha. E filha do Cabinda lhe chama ele. O negro vivia na sua terra, alegre e feliz; lá tinha os seus pais, a sua companheira, os filhos e a sua família. Um dia, não sabe como, achou-se com todos eles dentro de um navio, que começou a afastá-lo, cada vez mais, da sua pátria. Passou assim algum tempo, entre as duas imensidões, o mar e o céu, sem sentir saudades da sua terra, porque levava ainda ao seu lado aqueles que lhe davam alegria. Depois, puseram-no de novo em terra, levaram-no a ele e aos seus companheiros para uma grande casa, onde os brancos começaram a disputar o preço por que haviam de comprá-los. O Cabinda foi vendido e quiseram levá-lo. Levá-lo? E a sua companheira? E os filhos? E os seus pais? Esses, foram vendidos também, e cada um a seu senhor. Tristíssimo era o negócio da escravidão! Reagiu o negro, quando o quiseram separar dos seus, e quando também os separavam dele. Teve, então, saudades da sua pátria, terríveis, sem dúvida, porque eram, ao mesmo tempo, saudades da sua liberdade.
Fizeram-lhe, porém, estancar as lágrimas angustiosas as ameaças de um açoite, e o Cabinda lá partiu, sem esperanças de tornar a ver os filhos queridos, que nem sequer beijara na despedida, a esposa, que ele adorava com um culto rude, mas sincero, e os pais, que ele respeitava com a sua veneração selvagem. Partiu, mas ainda assim, a boa estrela guiava-o, porque, cortando-lhe as afeições mais caras da sua vida, ao menos o levaram para onde tinha de ser estimado, quase como pessoa de família, e não como escravo e negro que era. Em casa do seu senhor foi ele encontrar uma criancinha de dois anos, que tinha uns olhos lindos, os cabelos como os olhos, negros da cor do abismo, e um rosto como o dos anjos de um sonho de poeta, como o das fadas boas das visões nocturnas das matas virgens. A convivência foi-o afeiçoando àquela criancinha, que lhe sorria tão inocentemente; que lhe estendia, alegre, os bracinhos mimosos, e, brincando, o abraçava carinhosamente pelas pernas. O negro, quando via a pequenina Madalena, sentia não sei que doçuras n’alma, não sei que eflúvios no coração, mas que deviam ser gratíssimos, porque os olhos desanuviavam-se-lhe logo das sombras de tristeza, que os velavam sempre, e os lábios desatavam-se-lhe num sorriso de sincero e íntimo júbilo. E tomava-a no colo, sentava-se com ela à sombra das copadas tamarindeiras ou das laranjeiras em flor, cobria-a de beijos e afagos, entretecia-lhe coroas de jasmins e martírios, e olhava-a, assim numa espécie de adoração sublime e concentrada, talvez com a recordação nos filhinhos, que perdera, e que eram também pequeninos como a mimosa Madalena. Tinha dez anos a filha do Cabinda, quando perdeu a sua mãe. Ficavam-lhe os afagos de um pai extremoso e os carinhos do negro afeiçoado; mas que valia tudo isso? Que valia a gota d’água para tão grande sede? O átomo em face da imensidade desfeita? O negro, que era dedicado à sua senhora, tanto como à pequenina Madalena, esqueceu-se da sua condição de escravo, e arrojou-se, num ímpeto de dor e de afecto, a entrar no quarto da moribunda, poucos momentos antes dela despedir o derradeiro alento. Estava junto ao leito Jorge Macedo, que era o seu senhor, embebendo em beijos lacrimosos o rosto da inocente, que ia em breve ser o seu único encanto neste mundo.
Os dois, pai e filha, assistiam angustiados ao desabamento daquele edifício da sua ventura. O Cabinda entrou como perdido, olhou para Jorge com receio, com amor para Madalena e foi ajoelhar-se, de mãos postas, junto ao leito da enferma, chorando como criança. Anda cá, Cabinda, disse a moribunda, com voz amortecida, ao vê-lo de joelhos, ali, ao pé dela. Anda cá; vem ver como se vai para o céu!... Que fazes, atrevido! exclamou Jorge a meia voz. Ah! meu senhor! A mãe do escravo é um anjo, e o negro quer despedir-se da sua senhora! Sai, Cabinda! Oh! Não! Não! Suplicou este. O negro é escravo, mas o negro tem coração! E abraçava a roupa do leito para abraçar a moribunda, chorava como doido, soluçando em desespero e suplicando com ardor: a mãe do Cabinda há-de deixar a sua filhinha e o seu parceiro, a chorarem saudades como o bem-te-vi do mato? Não, não nos deixes, mãe senhora! Pai, atalhou Madalena, afagando as faces de Jorge, humedecidas pelas lágrimas; o Cabinda chora, não trates mal o Cabinda, que é nosso amigo». In Alfredo Campos, A Filha do Cabinda, 1873, Projecto Livro Livre, livro 594, Poeteiro Editor Digital, Iba Mendes, 2015.

Cortesia de IMendes/JDACT