domingo, 13 de dezembro de 2015

O Quarteto de Alexandria. Clea. Lawrence Durrell. «Meditava assim, preguiçosamente estendido numa rocha plana sobranceira ao mar, roendo uma laranja, perfeitamente envolvido numa solidão que em breve seria devorada pela cidade, pelo sonho tórpido de uma Alexandria aquecendo-se ao sol…»

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«(…) Tinha afinal readquirido a paz de espírito. Este punhado de dias azuis antes de partir, considerava-os um tesouro que me inebriava na sua simplicidade, e os toros de oliveira ardendo na velha lareira, em que o retrato de Justine seria o último objecto a ser embalado, lançavam sombras dançantes sobre a mesa, sobre as cadeiras e sobre o vaso de esmalte azul com os primeiros cíclames. Que tinha a cidade a ver com tudo isto, uma Primavera egeia oscilando entre o Inverno e os primeiros rebentos brancos das flores de amendoeira? Não passava de um mundo e significava pouco, rabiscado nas margens de um sonho ou repetido na mente à música coloquial do tempo, que não passa do desejo expresso em palpitações do coração. E, embora me fosse infinitamente caro, não me sentia com forças para ficar; essa cidade que eu odiava (ousava agora reconhecê-lo) propunha-me algo de diferente, uma nova perspectiva da experiência que me tinha marcado. Devia voltar a vê-la uma vez mais para me tornar capaz de abandoná-la definitivamente, de me libertar. Se falei do tempo é porque o escritor em que me ia tornando aprendia finalmente a habitar esses espaços desertos que faltam ao tempo, começava por assim dizer a viver entre as oscilações do pêndulo. O presente permanente, que é a verdadeira história dessa anedota colectiva, o espírito humano; visto que o passado morreu e o futuro é representado apenas pelo medo e pelo desejo, que é então este instante fugidio e não mensurável a que é impossível escapar? Para o vulgo, o chamado presente é igual a um sumptuoso repasto que as fadas nos apresentam... ,afastando-o antes de termos tempo de saboreá-lo. Tal como o fantasma de Pursewarden, esperava poder em breve afirmar com sinceridade: não escrevo para aqueles que nunca perguntaram a si próprios: onde começa a vida real?
Meditava assim, preguiçosamente estendido numa rocha plana sobranceira ao mar, roendo uma laranja, perfeitamente envolvido numa solidão que em breve seria devorada pela cidade, pelo sonho tórpido de uma Alexandria aquecendo-se ao sol, como um velho réptil, na luminosidade do grande lago acobreado. Os mestres sensualistas abandonando os corpos aos espelhos, aos poemas, aos bandos de rapazinhos e de mulheres, à agulha hipodérmica, ao cachimbo de ópio, à morte viva dos beijos sem desejo. Imaginando e percorrendo novamente essas ruas, eu descobria que elas davam não apenas a medida da história humana mas toda a escala biológica das afecções do coração, desde os delírios de Cleópatra, pintados nos frescos (estranho ter sido aqui, perto de Taposíris, que a vinha foi descoberta), até à hipocrisia beata de Hipátia (folhas de vide ressequidas, beijos de mártir). E que estranhos visitantes: Rimbaud, estudante da Via Escarpada, passou por aqui com o cinto recheado de ouro. E todos esses outros intérpretes de sonhos, políticos e eunucos foram como um bando de pássaros de brilhante plumagem. Indeciso entre a piedade, o desejo e o temor, eu via toda a cidade desdobrar-se diante de mim, habitada pelos rostos dos meus amigos e personagens. Sabia que devia repetir a experiência e de uma vez para sempre. Mas foi uma estranha partida, cheia de surpresas, o mensageiro, por exemplo, um corcunda num belo fato de seda fulgurante, rosa na botoeira e lenço perfumado na manga! E a súbita animação da aldeia que tinha até então, por delicadeza, ignorado a nossa existência, com excepção de Athena, que uma vez por outra nos oferecia um peixe, um jarro de vinho ou alguns ovos coloridos, que trazia escondidos na mantilha vermelha. Também a ela entristecia a nossa partida; na sua velha máscara enrugada e severa corriam as lágrimas quando olhava para a nossa modesta bagagem. Mas não os deixarão partir sem um gesto de hospitalidade, repetia obstinadamente. A aldeia não vai consentir que se vão assim sem mais nem menos. Iam oferecer-nos um banquete de despedida!
Quanto à criança eu tinha repetido com ela todas as fases dessa viagem (de toda a sua vida, em boa verdade), graças às ilustrações de uma história de fadas. Ela sentava-se ao meu lado estudando as ilustrações e escutando atentamente. Nunca se cansava de ouvir; estava mais do que preparada para tudo aquilo, estava quase impaciente até por ir tomar o seu lugar na galeria de retratos que tinha desenhado para ela. Estava impregnada de todas as cores confusas desse mundo quimérico ao qual havia pertencido outrora de direito e que ia reencontrar, um mundo povoado daquelas presenças: o pai, sombrio príncipe pirata, a madrasta, rainha despótica... Ela é como na carta? Sim. A rainha de espadas. E chama-se Justine? Sim. No retrato ela está a fumar. Acha que gostará mais de mim do que o meu pai, ou menos? Hão de gostar os dois de ti. Para lhe fazer compreender isso tive de socorrer-me do mito e da alegoria, essa poesia das incertezas infantis. Tinha-lhe ensinado de cor essa parábola de um Egipto que ia revelar-lhe bruscamente (elevados às dimensões de deuses ou magos) os retratos da família, dos antepassados. Não é a vida um conto de fadas que perde os seus poderes mágicos quando crescemos? Que importa! Ela estava desde já embriagada com a imagem do pai. Sim, compreendo tudo». In Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria, Clea, 1960, Publicações dom Quixote, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia PdQuixote/JDACT