quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O Mercador de Livros Malditos. Marcello Simoni. «O rosto de Rainerio tomou uma expressão paternal. Meu caro, estamos felizes por vos acolher. Ficareis a dormir na hospedaria ao lado do mosteiro e comereis no refeitório juntamente com a família monástica»

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«(…) Ao ouvir esta palavra, o rosto de Willalme fechou-se numa expressão carregada. Nos seus olhos bailara primeiramente a raiva e agora também muita tristeza, revelando uma dor ainda não aplacada. Willalme é um bom cristão, não tem nada que ver com a heresia albigense ou cátara, interveio Ignazio. Viveu durante muito tempo longe da sua terra. Conheci-o no regresso da Terra Santa e tornámo-nos companheiros de viagem. Fica aqui apenas uma noite, pois tem assuntos e tratar algures. Rainerio estudou o rosto do francês, que muito tinha a esconder por detrás daquele olhar brilhante, depois anuiu. De súbito pareceu lembrar-se de qualquer coisa e voltou-se na direcção dos últimos bancos do mosteiro. Uberto, chamou, dirigindo-se a um rapazito mouro que estava sentado entre os monges. Vem aqui um momento, quero apresentar-te uma pessoa. Por coincidência, Uberto estava naquele momento a perguntar a uns monges quem eram os dois visitantes, que nunca vira antes por ali. Um irmão respondia-lhe em voz baixa: O homem alto com barba e capuz é Ignazio de Toledo. Diz-se que durante o saque a Constantinopla terá deitado mão a algumas relíquias e também a livros valiosos, alguns até de magia... Parece que terá transportado o espólio para Veneza, arrecadando grandes riquezas e conquistando os favores da nobreza de Rialto. Mas no fundo é um bom homem. Por alguma razão seria amigo do abade Maynulfo. Sempre mantiveram uma longa correspondência. Ouvindo a voz de Rainerio, que o chamava, o rapaz pediu licença ao interlocutor e dirigiu-se ao pequeno grupo reunido à sombra do vestíbulo. Só então Ignazio tirara o capuz e descobrira o rosto, como que para o observar melhor. Estudou com descrição o seu rosto, os grandes olhos ambreados e os espessos cabelos pretos. Ora, tu deves ser Uberto, disse.
O rapaz devolveu-lhe o olhar. Não fazia ideia como havia de se dirigir àquele homem. Era mais novo do que Rainerio, mas emanava uma aura hierática que impunha respeito. Perturbado, baixou os olhos. Sou sim, meu senhor. O mercador sorriu. Meu senhor? Não sou um alto prelado! Chama-me pelo nome e trata-me por tu. Uberto acalmou-se. Lançou um olhar na direção de Willalme, impassível e atento. Diz-me, retorquiu Ignazio, és noviço? Não, interveio Rainerio. É um… Vá 1á, padre abade, deixe falar o rapaz. Não, não sou monge, sou um convertido, respondeu Uberto, surpreendido pelo à-vontade com que o mercador tratara Rainerio. Os irmãos encontraram-me quando eu ainda usava fraldas. Cresci e fui educado neste lugar. Por um instante, o rosto de Ignazio velou-se de tristeza, mas depressa retomou a expressão imperturbável. É um óptimo amanuense, acrescentou o abade. Muitas vezes lhe peço que copie pequenos códices ou que compile documentos. Ajudo no que posso, continuou Uberto, mais embaraçado do que modesto. Ensinaram-me a ler e a escrever em latim. Hesitou por momentos. Vós... tu viajaste muito? O mercador acenou afirmativamente, esboçando ao mesmo tempo uma expressão que deixava perceber a fadiga que acumulara no seu peregrinar. É verdade, visitei muitos lugares, disse. Se quiseres, poderemos conversar sobre isso. Vou ficar aqui alguns dias, se o abade mo permitir, claro.
O rosto de Rainerio tomou ulna expressão paternal. Meu caro, como já escrevi em resposta à vossa carta, estamos felizes por vos acolher. Ficareis a dormir na hospedaria ao lado do mosteiro e comereis no refeitório juntamente com a família monástica. Esta noite mesmo tomareis lugar à minha mesa. Estou-vos muito grato, padre. Agora peço-vos autorização para ir pôr o meu baú no quarto que me designastes. Willalme transportou-o desde o sítio onde o barqueiro o colocou e é muito pesado. O abade assentiu, atravessou o vestíbulo e foi até ao exterior. Procurava alguém. Hulco, estás aí?, gritou, espreitando por entre o cinzento finíssimo da chuva. Uma estranha figura aproximou-se, ondulante, encoberta por um molho de lenha que carregava às costas. Parecia que a chuva não o enfadava. Não se tratava de um monge. Era um camponês, ou melhor, um daqueles servos a quem se confiavam os trabalhos práticos do mosteiro. Devia ser Hulco. Resmungou qualquer coisa num vernáculo incompreensível.
Rainerio, visivelmente aborrecido por ter de dar ordens ao servo na primeira pessoa, falou como se estivesse a domesticar um animal: bom, meu filho... Não, deixa ficar a lenha. Põe-na aí, aí. Muito bem. Vai buscar um carrinho e ajuda os senhores a levar este baú para a hospedaria. Sim, para lá. E tem atenção para não o deixares cair. Muito bem, acompanhem-nos. Mudando de expressão, dirigiu-se de novo aos hóspedes: é rude, mas inofensivo. Ide com ele. Se entretanto não precisardes de mais nada, encontrar-nos-emos daqui a pouco, no refeitório, para o jantar. Depois de se despedirem de Rainerio e de Uberto, os dois companheiros seguiram Hulco, que, tendo largado o molho de lenha, continuou a caminhar, curvado e desconjuntado, mergulhando os sapatos na água». In Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.

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