sábado, 12 de dezembro de 2015

Inês Lourenço. Recensões. Cidália Dinis. «… um universo de sensações que são o lugar de arrebatamento, com o desejo e a imaginação a convocá-las, uma epistemologia dos sentidos, que constrói o erotismo e a sensualidade na relação com os seres, os acontecimentos, a corporeidade da existência»

Cortesia de wikipedia

«Procurei os sentidos
da água corrente, da pedra submersa, do arder
da lenha, do som de passos na areia.
A todas estas riquezas fugidias
chamei alma».
In Inês Lourenço, in ‘Coisas que Nunca’

«Inesgotável! Inesgotável na voz impressa, no tempo, no corpo, na alma, na morte, na mulher, na lâmina implacável do tempo. Inesgotável nas coisas que nunca deveriam perecer, assim se define a poesia de Inês Lourenço. Com efeito, toda a sua progressão textual faz-se no sentido de uma mais alta definição da voz poética, passando por experiências de dicção em que se podem distinguir essencialmente três momentos cruciais: uma primeira fase, marcadamente engagée, feminista e contestatária, a que correspondem Cicatriz 100% e Retinografias; uma segunda fase, da qual fazem parte Os Solistas, onde se assume uma atitude mais distante, descomprometida e mais irónica, sarcástica, em que se esboçam os vectores axiais da sua poética; e um terceiro momento, que se inicia com Teoria da Imunidade e se estende por Um Quarto com Cidades ao Fundo, A Enganosa Respiração da Manhã, Logros Consentidos, Disfunção Lírica e pelo seu último livro Coisas que Nunca, no qual Inês Lourenço opta, manifestamente, por uma poesia mais próxima da realidade, comprometida com o quotidiano, o minimalismo, sempre com a acidez cortante de uma ironia iconoclasta. Destes três momentos ressalta, segundo Isabel Allegro Magalhães, um universo de sensações que são o lugar de arrebatamento, com o desejo e a imaginação a convocá-las, uma epistemologia dos sentidos, que constrói o erotismo e a sensualidade na relação com os seres, os acontecimentos, a corporeidade da existência. No seio dessa fixação com o comum da vida, onde são fotografados pequenos nadas, constantes do presente ou da decantação da memória, o ritmo involuntário da vida invade-nos docemente a alma. Desse ritmo intensamente irregulado/ofegante ou sísmico esboça-se Coisas que Nunca, livro feito de sucessivas reinvenções, de múltiplos sentidos ou sem-sentidos, onde a voz da poetisa pulsa como lâmina implacável do tempo, despedaçando os músculos dos sentidos:

Reescrita
Fender os versos
com a lâmina implacável do
tempo. No umbigo do poema cravar
o sabre rente às vísceras dos verbos,
à linfa de adjectivos. Despedaçar
os músculos dos sentidos. Abrir
a rede viária do sangue. Romper
a velha epiderme.

Coisas que Nunca é, pois, o reflexo de uma voz que num percurso de vinte anos se foi delineando, num progressivo e contínuo amadurecimento, assente simultaneamente numa poética de sabedoria e da emoção concebida razão. Desde sempre, e segundo Valter Hugo Mãe, que a escrita desta autora se faz desse estar acima parecendo levar o chão nos pés, ou vir ao chão suportando o céu nas mãos. É do encontro com a memória, a infância, o corpo, a cidade, o espaço, com a transfiguração do quotidiano e a circunstância que a sua poesia espelha uma (in)temporalidade renovada e inovadora:

As raparigas da Foz há muito deixaram
de enlaçar os bilros sobre as almofadas.
Já não imitam nos meandros da renda o desenho
das ondas. Nem esperam, rodeadas de filhos pequenos

o regresso do seu modesto ulisses. Hoje
trabalham na pizzaria ou servem pregos e finos
na esplanada. Com um pouco de sorte fazem
um Curso de Gestão ou de outras ciências
ocultas para gáudio da família que as vai
ver desfilar no Cortejo da Queima e noutras
praxes saloias que a turba não dispensa.

Também há as outras, que ao certo não
sei o que fazem, mas que ainda debutam
aos dezoito anos ao som de O Danúbio Azul,
com reportagem na imprensa rosa.

Mas o certo é que o mar da Foz não desbotou
jamais a sua cor atlântica, nem desistiu
desde há milénios de receber o Douro,
embora os caranguejos, as lapas
e os beijinhos nos tenham abandonado
como as histórias de antigos piratas e Robinsons
deixaram os nossos sonhos.

O mar da Foz envolve na salina rebentação
aquele poderoso rio, que apesar de retido
em comportas de barragem, incorpora
desde a nascente o corpo feminino
das ribeiras que para ele correm ainda
como rendilheiras, no regresso dos barcos.

Mais do que uma recolha de contida e rigorosa escrita, esta obra, marcada por uma alternância entre poemas curtos e longos, reflecte toda uma lógica assente numa sequencialidade orgânica e vincadamente serial, isto é, compõe-se de poemas claramente entrelaçados, numa límpida construção que prende e envolve de forma poderosa o leitor. Inês Lourenço é, desde logo, criadora de ponderado verso, como verso calibrado por metrónomo, cortado por mão segura. Como uma faca. Sem paradas inúteis». In Cidália Dinis, Inês Lourenço, Recensões, CEM, nº 3, Cultura, Espaço e Memória, Inês Lourenço, Coisas que Nunca, Lisboa, &ETC, 2010, ISBN 978-989-815-025-7.

Cortesia de CEM/JDACT