quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Uma Mulher de Poder no Coração da Europa Medieval. Isabel de Portugal. Daniel Lacerda. «Mas, mais do que isso, pela sua natureza generosa, exerceu uma função insubstituível enquanto elo de ligação e de reconciliação entre o duque, os seus vassalos e os administradores»

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Duquesa de Borgonha. O caso de Calais
«(…) A sublevação estendeu-se a Bruxelas, Lovaina e Malines. Piratas vindos da Holanda e da Zelândia unindo-se aos insurrectos de Calais, que continuava sob controlo inglês, arruinaram o comércio que se fazia por via marítima e desceram à Flandres para pilhar. O duque procurava, mas em vão, que estas acções não deteriorassem o comércio com os portos germânicos de Hamburgo, Lubeque e Bremen. Em Maio de 1437, uma nova insurreição, que vitimou dezenas de soldados ducais bem como o capitão Jean Villiers, senhor de Isle-Adam, pôs Filipe em dificuldade. As terras da Flandres atravessavam um período de penúria, miséria e fome, enquanto em Paris uma epidemia provocava mais de 50 mil mortos. Na sequência destes acontecimentos a duquesa foi solicitada a intervir junto do duque por deputações de magistrados e donatários dos ofícios enviados pela cidade de Bruges, que ela recebeu em Hesdin e Arras. Nesta cidade da Picardia fora concluído um tratado de paz que humilhava os habitantes de Bruges. Estes tiveram de aceitar uma dezena de execuções capitais, consumadas a 30 de Abril de 1438, uma pesada multa de 200 000 ridders e foi ainda acordado indemnizar a duquesa com várias somas em ouro por terem-na prendido e pelo seu papel de intermediária no tratado. Tocada na sua sensibilidade por este excesso, a duquesa prescindiu da última recompensa e, reconciliante, tornou a Bruges depois das decapitações, enquanto Filipe lá não voltaria senão em 1440.
Dona Isabel foi expressamente coagida pelo duque a aceitar a reparação de desobediência da parte das autoridades de Bruges, que pediram para vê-la, e comportou-se como uma mensageira de paz entre aqueles e Filipe. Implicada de novo nos meandros da violência guerreira, que regulava os conflitos de poder da época, a duquesa, com os dons da sua própria natureza, conseguia forjar novos equilíbrios que excluíam o excesso absoluto. As responsabilidades executivas de dona Isabel no seio da administração do ducado revestiam-se de vários aspectos segundo as circunstâncias, dadas as suas capacidades e qualidades. Em tempo normal, ocupava-se da gestão da economia; e dos assuntos da defesa, em que chegou a tomar decisões, por ocasião dos constantes afrontamentos guerreiros. Mas, mais do que isso, pela sua natureza generosa, exerceu uma função insubstituível enquanto elo de ligação e de reconciliação entre o duque, os seus vassalos e os administradores.
Os cronistas perguntaram-se durante muito tempo qual o modelo que a duquesa teria seguido nas múltiplas escolhas que alargaram consideravelmente o círculo de relações do ducado. Os estudos levados a cabo sobre sua mãe, a rainha dona Filipa, que abandonou a corte do duque de Lencastre em 1387 para se tornar mulher de João I de Portugal, esclarecem-nos em muitos pontos. Com efeito, ela notabilizou-se por ter impelido o rei a acções decisivas, em particular o seu envolvimento na expansão transatlântica e na perseguição aos mouros infiéis. Apoiando-se nos religiosos cristãos, fez adoptar pela força costumes litúrgicos ingleses. E, mantendo continuadamente relações com o seu país, conservou junto de si, em Portugal, um pessoal britânico numeroso, como dona Isabel fez com os portugueses.

O regresso às relações com os ingleses
Razões económicas estiveram na origem do rápido restabelecimento das trocas comerciais com os ingleses e dona Isabel, dada a sua posição privilegiada, desempenhou aí o seu papel. Enviou de facto vários mensageiros (Sanche Lalaing e, secretamente, o seu mordomo Louis Chantemerle), ao outro lado da Mancha para tomar contacto com o seu tio Henri de Beaufort, bispo de Winchester, onde foram encetadas as conversações de Gravelines. A duquesa negociou igualmente com as cidades têxteis flamengas o pagamento de um imposto sobre a lã importada de Inglaterra. Dona Isabel começou por ir ao encontro da embaixada de Beaufort, perto de Gravelines, no fim de Janeiro de 1439. Os ingleses mostraram-se conciliadores e prontos a libertar Carlos Orleães, feito prisioneiro com outros nobres na desgraçada batalha de Azincourt, em 1415, face ao desejo por ela manifestado de discutir as condições do restabelecimento de uma paz estável. A duquesa partiu acompanhada de sábios, conselheiros eclesiásticos e seculares; o duque preferiu a reserva. Ele acabava de obter uma reaproximação com França ao negociar o casamento do seu filho Carlos, conde de Charolais, com Catarina, filha do rei, acordo que foi assinado por Crèvecoeur, embaixador do duque, em Setembro de 1439, em Blois». In Daniel Lacerda, Isabelle de Portugal – duchesse de Bourgogne, Éditions Lanore, 2008, Isabel de Portugal, Duquesa de Borgonha, Uma Mulher de Poder no coração da Europa Medieval, tradução de Júlio Conrado, Editorial Presença, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-23-4374-9.

Cortesia de Presença/JDACT