segunda-feira, 23 de novembro de 2015

O Sétimo Papiro. Wilbur Smith. «O que fazer com esse conhecimento que recolhemos? Se ele cair em mãos erradas... Mesmo se o entregarmos à pessoa certa, ela iria acreditar que este material tem quase quatro mil anos?»

Cortesia de wikipedia

«(…) Os dois puseram-se a trabalhar na frescura da noite. Era quando o faziam melhor. Às vezes conversavam em árabe, outras em inglês; para ambos, as duas línguas eram uma só. Com menos frequência usavam o francês, que tinham como terceira língua. Tanto um como outro haviam sido educados em universidades da Inglaterra e dos Estados Unidos, tão distantes deste próprio Egipto que lhes pertencia. Royan gostava da expressão deste próprio Egipto que Taita usava com frequência nos seus papiros. Ela tinha tantas afinidades com o velho egípcio! Afinal, era a sua descendente directa. Era cristã copta, não da linhagem árabe que há tão pouco tempo conquistara o Egipto, menos de catorze séculos. Os árabes eram recém-chegados a esse próprio Egipto que lhe pertencia, ao passo que o seu sangue retrocedia ao tempo dos faraós e das Grandes Pirâmides. Às dez horas Royan fez café, aquecendo-o num fogão a carvão que Alia acendera antes de voltar para a sua casa no vilarejo. Eles beberam a doce e forte infusão em xícaras grossas, cheias pela metade de pó grosso. Beberam e conversaram como bons amigos. Para Royan, era esse o relacionamento deles: bons amigos. Conhecera Duraid quando voltara da Inglaterra com o seu doutoramento em arqueologia e conseguira um cargo no Departamento de Antiguidades, que ele dirigia. Era a sua assistente quando ele abrira a tumba no Vale dos Nobres, o túmulo da rainha Lostris, que datava de cerca de 1780 a.C.. Compartilharam a mesma decepção ao descobrir que o túmulo fora roubado em tempos distantes e todos os seus tesouros tinham sido levados. O que restara eram os maravilhosos afrescos que revestiam as paredes e os tectos da tumba. Royan trabalhava na parede atrás dos plintos sobre os quais outrora estivera o sarcófago, fotografando os afrescos, quando uma parte do reboco caiu e revelou um nicho que escondia dez jarros de alabastro. Cada um deles continha rolos de papiro. Todos tinham sido escritos e colocados ali por Taita, o escravo da rainha. Desde então, a vida de ambos, a de Duraid e a sua, passou a girar em torno desses fragmentos de papiros. Embora um pouco danificados e deteriorados, na sua maior parte haviam sobrevivido notavelmente intactos por quase 4 000 anos.
Que história fascinante eles continham! Uma nação atacada por um inimigo superior, armados com cavalos e carros de guerra ainda desconhecidos dos egípcios da época. O povo do Nilo, massacrado pelas hordas dos hicsos, foi obrigado a fugir. Conduzido pela rainha Lostris, seguiu pelo grande rio em direcção ao sul, quase até à nascente, nas cruéis montanhas da Etiópia. Foi nessas montanhas proibidas que Lostris enterrou o corpo mumificado de seu marido, o Faraó Mamose, morto numa batalha contra os hicsos. Muito tempo depois a rainha Lostris reconduziu o seu povo para o norte, a esse próprio Egipto. Armados então com carros de guerra e cavalos, forjados pela estepe africana em bravos guerreiros, os egípcios lançaram-se pelas cataratas do grande rio e novamente atacaram o invasor hicso até triunfar, arrancando de suas mãos a dupla coroa do Baixo e Alto Egipto. Era uma história que tocava as fibras de seu ser, e fascinava-a desvendar cada hieróglifo que o velho escravo havia desenhado nos papiros. Há muitos anos trabalhavam durante a noite na vila do oásis, após terem concluído a rotina diária no Museu do Cairo, e já haviam decifrado os dez pergaminhos, todos, menos o sétimo. Esse era o grande enigma, aquele que o autor tinha ocultado há tanto tempo em níveis iconográficos e alusões obscuras e imperscrutáveis. Alguns dos símbolos usados jamais haviam aparecido nos milhares de textos estudados na sua vida conjunta de trabalho. Era óbvio para ambos que Taita não pretendia que os papiros fossem lidos por mais ninguém além de sua amada rainha. Era o seu último presente para ela, para que o levasse para além-túmulo. Exigira dos dois arqueólogos toda a habilidade, toda a imaginação e engenhosidade, mas ao menos eles estavam aproximando-se da conclusão da tarefa. Havia ainda muitas falhas na tradução, e trechos cujo verdadeiro significado eles não sabiam se tinham captado ou não, mas o esqueleto do manuscrito estava revelado de tal forma que era possível discernir o perfil da criatura ali representada.
Duraid bebeu um gole de café e balançou a cabeça, como sempre fazia. Isso me assusta,  disse. A responsabilidade... O que fazer com esse conhecimento que recolhemos? Se ele cair em mãos erradas... Outro gole, e ele suspirou. Mesmo se o entregarmos à pessoa certa, ela iria acreditar que este material tem quase quatro mil anos? Por que temos de mostrá-lo a alguém? Royan beirava a exasperação. Por que nós dois não fazemos o que deve ser feito? Nesses momentos a diferença entre eles ficava mais clara: ele era a própria cautela da velhice; ela, a impetuosidade da juventude. Não entendes. Ela não gostava disso, ser tratada como os árabes tratam as suas mulheres, num mundo totalmente masculino. Conhecia outro mundo onde elas exigiam e obtinham o direito de ser tratadas como iguais. Era uma criatura presa entre esses dois mundos, o ocidental e o árabe. A mãe de Royan era inglesa, e trabalhara na embaixada britânica do Cairo nos tempos conturbados após a II Guerra Mundial. Conhecera e se casara com ele, o pai de Royan, um jovem oficial egípcio do staff do coronel Nasser. Uma união improvável, que só persistiu até a adolescência de Royan». In Wilbur Smith, O Sétimo Papiro, 1995, Editora Best Seller, 2004, ISBN 978-853-321-159-9.

Cortesia de EBSeller/JDACT