segunda-feira, 23 de novembro de 2015

O Sétimo Papiro. Wilbur Smith. «Ela debruçou-se por cima do ombro dele e estudou o hieróglifo na foto do papiro que ele apontava. Não conseguia entender nada, e tirou a lente de aumento da mão de Duraid para examinar melhor»

Cortesia de wikipedia

«O anoitecer avançava sobre o deserto, tingindo as dunas de púrpura. O manto de veludo emudecia todos os sons e a noite se anunciava tranquila. De onde eles estavam, no alto de uma duna, avistavam o oásis e o complexo de vilarejos ao redor. As construções eram brancas, de tectos baixos, e as folhas das palmeiras sobrepunham-se a todas, com excepção da mesquita muçulmana e da igreja cristã copta. As águas do lago escureciam. Patos em revoada inclinavam-se com as asas fechadas para pousar, borrifando de espuma a vegetação das margens. O homem e a mulher formavam um casal díspar. Ele era alto, levemente encurvado, e os seus cabelos prateados brilhavam no que ainda restava da luz do sol. Ela era jovem, pouco mais de trinta anos, esguia, alerta e vibrante. Seus cabelos grossos e cacheados estavam presos por uma tira de couro na altura da nuca. É hora de descer. Alia está esperando. Ele sorriu orgulhoso. Era a sua segunda esposa. Quando perdera a primeira, fora como se a morte tivesse levado a própria luz do dia. Não esperava esse último período de felicidade na sua vida. Tinha, agora, a ela e ao seu trabalho. Era um homem feliz e satisfeito. Ela se afastou e soltou a tira de couro dos cabelos. Sacudiu-os de um lado e de outro, densos e escuros, e riu. Um riso sonoro. Então atirou-se na face íngreme e escorregadia da duna, enquanto a saia longa se enroscava nas pernas ligeiras, morenas e bem-feitas. Ela equilibrou-se até a metade do caminho, quando a força da gravidade a venceu e a fez cair. Lá do alto ele sorriu complacente. Às vezes ela agia como criança. Outras, era uma mulher séria e nobre. Não sabia bem qual preferia, mas a amava de ambos os jeitos. Ela rolou para o pé da duna e se sentou, sempre rindo, espanando a areia dos cabelos. É a sua vez!, gritou para o alto. Ele começou a descer tranquilamente, com certa dificuldade por causa da idade, e manteve o equilíbrio até chegar em baixo. Ajudou-a a se erguer. Não a beijou, embora a tentação de fazê-lo fosse grande. Não era costume entre os árabes demonstrar afecto publicamente, mesmo à esposa amada. Ela ajeitou a roupa, amarrou outra vez os cabelos, e os dois foram para o vilarejo. Contornaram as moitas de capim do oásis, cruzaram os troncos finos que serviam de ponte sobre os canais de irrigação. Os camponeses voltavam-se para saudá-lo com profundo respeito. Salaatn aleikum, Doktari! A paz esteja convosco, doutor. Eles honravam todos os homens de sabedoria, mas esse especialmente, pela gentileza que há tantos anos dedicava a cada um e a suas respectivas famílias. Muitos tinham trabalhado para o seu pai. Pouco importava que a maioria fosse de muçulmanos, ao passo que ele era cristão. Quando chegaram ao vilarejo, Alia, a velha empregada, saudou-os com cara feia e resmungos: Estão atrasados. Estão sempre atrasados. Por que não mantêm horários normais, como gente decente? Temos uma posição a zelar. A velha mãe está sempre certa, ele provocou-a subtilmente. O que faríamos sem você para cuidar de nós? Mandou-a ir; ela ainda mantinha a cara fechada, tentando disfarçar o seu amor e preocupação. Fizeram uma refeição simples no terraço: tâmaras e azeitonas, pão sem lêvedo e queijo de cabra. Quando terminaram, já estava escuro e as estrelas do deserto brilhavam como velas acesas.
Royan, minha flor, disse ele, estendendo o braço sobre a mesa e tocando a mão dela, está na hora de trabalhar. Saíram da mesa e foram para o escritório, cuja entrada também era pelo terraço. Royan Al Simma foi até ao cofre de aço na parede mais distante e digitou a combinação. O cofre parecia deslocado naquele lugar, em meio a velhos livros e papiros, estatuetas, artefatos e fragmentos de tumbas que compunham o acervo de toda uma vida. A pesada porta de aço se abriu e Royan parou diante dela por um momento. Era comum sentir respeito e reverência diante de relíquias tão antigas, mesmo que as tivesse visto pela última vez somente há poucas horas. O sétimo papiro, ela sussurrou, estendendo a mão para tocá-lo. Tinha quase quatro mil anos de idade e fora escrito por um grande génio, um homem que já se transformara em pó há milênios, mas a quem ela conhecia e respeitava como ao seu próprio marido. Suas palavras eram eternas e lhe falavam com clareza de além-túmulo, dos campos do paraíso, na presença da grande trindade, Osíris, Isis e Hórus, pela qual seu marido tinha tanta devoção. Com a mesma devoção Royan acreditava agora na Trindade cristã. Ela levou o papiro até à mesa onde Duraid, seu marido, estava trabalhando. Ele ergueu os olhos quando Royan se debruçou à sua frente, e nesse instante ela viu nele a mesma devoção. Queria ver o papiro sempre sobre a mesa, mesmo que não houvesse necessidade. Podiam estar trabalhando nos microfilmes e nas fotografias. Mas era como se precisassem da presença invisível do autor ancestral para estudar os seus textos. Duraid pôs de lado a emoção e voltou a ser o cientista desapaixonado. Seus olhos são melhores que os meus, minha flor. O que acha deste caractere? Ela debruçou-se por cima do ombro dele e estudou o hieróglifo na foto do papiro que ele apontava. Não conseguia entender nada, e tirou a lente de aumento da mão de Duraid para examinar melhor. Parece que Taita inseriu aqui este outro criptograma só para nos atormentar. Ela referia-se ao velho autor como a um amigo querido, às vezes irritante, que ainda vivia, respirava e continuava pregando suas peças. Vamos ter de decifrá-lo, então, Duraid declarou com claro alívio. Ele amava esse velho jogo. Era o trabalho de sua vida». In Wilbur Smith, O Sétimo Papiro, 1995, Editora Best Seller, 2004, ISBN 978-853-321-159-9.
               
Cortesia de EBSeller/JDACT