sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Mal por Mal, antes Pombal. José Jorge Letria. «Convertido ao luteranismo, fui uma das vozes que se ergueram para atribuir as causas profundas do terramoto de 1 de Novembro de 1755 aos erros de políticos como Sebastião José, aos seus abusos…»

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«(…) Agravam-me a honra e mancham-me a memória, e eu sinto-me forçado, com as parcas forças que me restam, a escrever as apologias que me deixem ao abrigo do opróbrio e da condenação injusta. Enquanto um sopro de vida me animar o corpo, tudo farei para que o nome do marquês de Pombal não seja arrastado na lama como se de criminoso comum se tratasse. Sei que as decisões que tomei e as ordens que dei fizeram com que eu tivesse de viver até ao fim dos meus dias cercado de inimigos. Conheço-lhes os nomes, os rostos, sei onde moram, que amantes têm, que vantagens tiraram da minha protecção e, acima de tudo, tenho memória bastante para nunca os esquecer nem lhes perdoar o mal que me fizeram. Se dissesse o contrário, nesta hora em que as grandes contas se acertam, mentiria a mim próprio e a Deus, que na sua infinita sabedoria sabe que as minhas qualidades suplantam os meus defeitos e pecados. Não me arrependo de ter agido como sempre agi, pois sempre estive bem ciente de ser esse o preço que paga quem genuinamente governa, não se limitando a correr com o vento pelas costas.
Eu corri contra o vento das inércias e dos medos antigos, arregacei as mangas e corri os riscos que deve correr um verdadeiro homem de Estado. Eis a razão por que entrei agora, nesta avançada e penosa idade, no impiedoso Inverno da minha vida, alquebrado pelas mazelas do corpo e pelos protestos de uma alma ferida pelos insultos e ofensas nascidos com a Viradeira. À voz que me vem cá de dentro, do fundo de mim, eu respondo com a franqueza de alma que me leva a dizer: em muita coisa terei falhado, feito imperfeito juízo, mas nunca ao ponto de ter hoje como inimigos jurados aqueles que antes da inclemência deste Inverno me aplaudiam, adulavam e enriqueciam à minha custa.

Fala do Cavaleiro de Oliveira
Foi com enorme e justificada satisfação que recebi no exílio a notícia do afastamento do cargo de Sebastião José, meu carrasco em vida, responsável pela minha morte em efígie num público auto-de-fé. Afastado o déspota, ainda acreditei, mesmo doente e na penúria, que me seria possível retornar a Lisboa e servir sua majestade dona Maria I, que tanto admiro e venero. Mas esse superior desígnio acabou por não ser atendido nem cumprido. Eu e Sebastião José conhecemo-nos na legação diplomática portuguesa em Viena de Áustria, onde ambos tínhamos missões de Estado para cumprir. Prontamente antipatizámos um com o outro. Ele fazia diligências para, sendo plebeu de origem, se conseguir casar com uma nobre de alta estirpe. Eu, pelo contrário, rendido aos encantos da libertinagem e não sendo como ele um moralista retrógrado numa Europa que evoluía também nos costumes, seduzia mulheres e conquistava corações, nunca tendo deixado por isso ficar mal o nome de Portugal.
Bem pelo contrário. Sebastião José decidiu perseguir-me a partir dessa altura, informando Lisboa acerca de dívidas de jogo e alegadas imposturas que me eram atribuídas por força da inveja e da mesquinhez humanas. Mas a verdade é que essas intrigas fizeram o seu caminho e eu nunca mais pude regressar à minha querida Lisboa, durante quase quarenta anos. Foi como se várias vezes tivesse morrido em vida. Em países como a Itália ou a Holanda escrevi livros, tornei-me livre-pensador tornei-me protestante, fui reconhecido e apreciado e nunca deixei de me render ao encanto das mais belas mulheres. Sebastião José, já com o título de marquês de Pombal, nunca deixou de me seguir e perseguir à distância, através da sua rede de espiões e esbirros diplomáticos, certificando-se de que eu não teria condições para regressar a Portugal.
Convertido ao luteranismo, fui uma das vozes que se ergueram para atribuir as causas profundas do terramoto de 1 de Novembro de 1755 aos erros de políticos como Sebastião José, aos seus abusos e formas várias de desrespeito pela dignidade humana. Paguei o preço doloroso da coragem que tive ao ver-me condenado pela Inquisição (maldita) a ser queimado em efígie juntamente com o padre Gabriel Malagrida, esse de corpo inteiro, eu só na dor de me saber eterno exilado e apátrida. Nunca entre mim e Pombal houve lugar para o perdão ou para o diálogo, embora muitas vezes lhe tenha escrito e ele tenha deixado sem resposta as minhas bem intencionadas missivas, sempre abertas a uma possível reconciliação, que só teria sido vantajosa para Portugal, tendo em conta os meus contactos privilegiados junto das chancelarias das grandes capitais europeias. Porém, quem triunfou longe de Portugal, com o beneplácito do marquês, foi Luís António Verney, Ribeiro Sanches e Luís Cunha, ficando-me reservada a vala comum do esquecimento». In José Jorge Letria, Mal por Mal, Antes Pombal, Uma Memória de Sebastião J. Carvalho Melo, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-005-8.

Mal por mal, antes Pombal, expressão popular usada pelo povo de Lisboa quando o marquês de Angeja, que substituiu Pombal, mandou suspender todas as obras de recuperação da cidade por ele iniciadas

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