sábado, 28 de novembro de 2015

Inês de Castro. Da Tragédia ao Melodrama. Nair de Nazaré Soares. «Senhor, que estás nos Ceos e vês as almas, que cuidam, que propõem, que determinam, alumia minha alma, não se cegue no perigo em que está. Não sei que siga. Entre medo e conselho fico agora: Matar injustamente é grã crueza…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Inês de Castro: da tragédia ao melodrama
«(…) Notável é a dinâmica discursiva que o poeta imprime a este primeiro confronto entre o rei e os conselheiros que o IV acto prolonga e agudiza. Termina a cena com o recrudescimento da acção, provocado pela indecisão régia que, verdadeira analepse, conduzirá à morte de dona Inês: I-vos aparelhar, que em vós me salvo. A cena II é composta por um monólogo do rei, introduzido por uma invocação a Deus, bem ao gosto dos autores da literatura de Quinhentos:

Senhor, que estás nos Ceos e vês as almas,
que cuidam, que propõem, que determinam,
alumia minha alma, não se cegue
no perigo em que está. Não sei que siga.
Entre medo e conselho fico agora:
Matar injustamente é grã crueza,
Socorrer a mal publico é piedade.
Dua parte receo, mas doutra ouso…

E logo se seguem, neste monólogo do rei, reflexões que o coro, no final do acto, prolonga, à maneira senequiana, tema coral predilecto de Séneca, colhido nos poetas clássicos, designadamente Horácio e Virgílio, e que ecoam, num entretecido de reminiscências clássicas, o famoso O fortunatos nimium si bona norint/agricolas das Geórgicas do Mantuano:

Ó vida felicíssima a que vive
o pobre lavrador só no seu campo,
seguro da fortuna e descanso,
livre destes desastres que cá reinam!
Ninguém menos é rei que quem tem reino.
Ah, que não é isto estado, é cativeiro,
De muitos desejado, mas mal crido…

É este monólogo um dos trechos mais inspirados da Castro, pois combina a expressão lírica adequada à vivência individual de um rei, sobrecarregado com os deveres de ofício, com elementos que são referentes ideológicos e culturais da mentalidade de então: o encarecimento da aurea mediocritas, a denúncia dos vícios da uita aulica, o socratismo cristão que os versos finais traduzem:

...e me livra algum tempo, antes que moura,
de tanta obrigação pera que possa
conhecer-me melhor e a ti voar.

O acto II é o único em que, antes do êxodo, o Coro se não pronuncia no decurso da acção, mas tem dela um perfeito conhecimento e adquire saber político para entoar o canticum final. O Coro I, em estrofe sáfica, esquema métrico usado por Teive, na Ioannes princeps, considerada fonte da Castro, versa o tema dos trabalhos do rei, das responsabilidades do poder. O Coro II, numa sequência de versos de seis sílabas, retoma o tema da aurea mediocritas, canta a felicidade dos pequenos do mundo. O Acto III, em absoluto contraste com o locus amoenus, com a uisio poética do acto I, apresenta-nos a protagonista num cenário de pesadelo, o locus horrendus.

Nunca mais tarde pera mim que agora
amanheceu. O sol claro e fermoso,
como alegras os olhos, que esta noite
cuidaram não te ver! Ó noite triste
Ó noite escura, quão comprida foste...

Envolta agora numa atmosfera de tensão e de presságio, conta à ama o sonho triste, cheio de elementos simbólicos do ponto de vista poético e dramático. A própria paisagem se torna reveladora da mudança da fortuna, numa espécie de conivência entre a natureza e a fatalidade. Entre a esperança e o medo, spes et metus, dois elementos que, segundo a retórica, preparam o pathos, se confessa a Castro: Porque temo perder o bem que espero. A terminar esta cena inicial do acto III, Ferreira deixa no ar uma nota lírica de esperança, trazida pelas palavras da Ama, que são um convite à alegria e à confiança. Surge de novo o locus amoenus, onde Inês deveria desfrutar de todos os bens e gozar feliz os seus dias:

Ah, não te agoures mal, que melhor fado
o teu será, senhora! Quem tristeza
de sua vontade chama, mal a pode
lançar de si, que às vezes n’ alegria
entra tão furiosa que a destrui.

Mas esta abertura, esta clareira momentânea de novo se fecha, para ser ainda maior o efeito trágico da notícia da morte iminente da heroína, na cena seguinte. O dramaturgo quis assim, neste acto, criar e enriquecer a peripécia, ao fazer evoluir aceleradamente a acção para uma situação de infelicidade ou vice-versa, segundo os preceitos de Aristóteles». In Nair Nazaré Castro Soares, Inês de Castro, Da Tragédia ao Melodrama, Universidade de Coimbra, As Artes de Prometeu, homenagem a Ana Paula Quintela, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.

Cortesia da FLUPorto/JDACT