sábado, 14 de novembro de 2015

Idade Média. Umberto Eco. «… a Idade Média ocidental, ocorre a do império do Oriente, que continua viva nos esplendores de Bizâncio durante mil anos depois da queda de Roma. […] floresce uma grande civilização árabe enquanto na Europa circula clandestinamente uma cultura hebraica»

Cortesia de wikipedia e jdact

Bárbaros. Cristãos. Muçulmanos
«Para não ter a mesma extensão dos volumes a que se refere, uma introdução à Idade Média deveria limitar-se a dizer que a Idade Média é o período que começa quando o Império Romano se dissolve e que, fundindo a cultura latina, tendo o cristianismo como aglutinante, com a dos povos que pouco a pouco foram invadindo o império, dá origem ao que hoje chamamos Europa, com as suas nações, as línguas que ainda hoje falamos e as instituições que, apesar de mudanças e revoluções, são ainda as nossas. Seria muito, mas muito pouco. Pesam sobre a Idade Média muitos estereótipos, e por isso será conveniente precisar, antes de mais, que a Idade Média não é o que o cidadão (ã) comum pensa, o que muitos manuais escolares compostos à pressa fazem crer e que o cinema e a televisão têm apresentado. A primeira coisa que, portanto, deve dizer-se é o que a Idade Média não é. Em seguida, deve investigar-se o que é que a Idade Média nos deixou e ainda hoje é actual. Por fim, em que sentido ela foi radicalmente diferente do tempo em que vivemos.

O que a Idade Média não é. A Idade Média não é um século
Não é um século, como o século XVI ou o século XVII, nem um período bem definido e com características reconhecíveis como o Renascimento, o Barroco ou o Romantismo. É uma sucessão de séculos assim chamada pelo humanista Flavio Biondo, que viveu no século XV. Como todos os humanistas, Biondo preconizava um regresso à cultura da Antiguidade Clássica e, por assim dizer, colocava entre parêntesis os séculos (em que ele via uma época de decadência) que decorreram entre a queda do Império Romano (476) e o seu tempo, embora o destino haja decidido que, afinal, Flavio Biondo pertencesse também à Idade Média, por ter morrido em 1463 e se ter convencionalmente fixado o fim da Idade Média no ano de 1492, o ano do descobrimento da América e da expulsão dos mouros de Espanha. 1492 menos 476 é igual a 1016. Mil e dezasseis são muitos anos, e é difícil crer que o modo de viver e de pensar se tenha mantido imutável ao longo de um período tão extenso e em que ocorreram muitos factos históricos hoje estudados nas escolas (das invasões bárbaras ao renascimento carolíngio e ao feudalismo, da expansão dos árabes ao nascimento das monarquias europeias, das lutas entre a Igreja e o império às Cruzadas, de Marco Polo a Cristóvão Colombo, de Dante à conquista de Constantinopla pelos turcos).
Há uma experiência interessante que consiste em indagar de uma pessoa culta (desde que não seja especialista em assuntos medievais) quantos anos decorreram entre Santo Agostinho, considerado o primeiro pensador medieval, se bem que tenha morrido antes da queda do Império Romano, e São Tomás de Aquino, pois são estudados ainda hoje como representantes máximos do pensamento cristão. Pois bem, não são muitas as pessoas que dão a resposta certa, oito séculos, mais ou menos tantos como os que nos separam de São Tomás. Embora naqueles tempos tudo corresse mais lentamente do que hoje, em oito séculos podem acontecer muitas coisas. Por isso a Idade Média é, perdoe-se-me a tautologia, uma idade como a Idade Antiga ou a Idade Moderna. A Idade Antiga, ou Idade Clássica, é uma sucessão de séculos que vão dos primeiros ao dos pré-homéricos aos poetas do baixo-império latino, dos pré-socráticos aos estoicos, de Platão a Plotino, da queda de Troia à queda de Roma. Do mesmo modo, a Idade Moderna vai do Renascimento à Revolução Francesa, e a ela pertencem tanto Rafael como Tiepolo, tanto Leonardo como a Encyclopédie, tanto Pico della Mirandola como Vico, tanto Palestrina como Mozart. Devemos, pois, tratar a história da Idade Média na convicção de ter havido muitas idades médias e, se a alternativa passa pela adopção de uma data também ela excessivamente rígida, que, pelo menos, tenha em consideração algumas viragens da história. É assim que costuma distinguir-se a alta Idade Média, que vai da queda do Império Romano ao ano 1000 (ou, pelo menos, a Carlos Magno), uma Idade Média de transição, a do chamado renascimento depois do ano 1000, e finalmente uma baixa Idade Média que, apesar das conotações negativas que a palavra baixa poderá sugerir, é a época gloriosa em que Dante conclui a Divina Comédia, Petrarca e Boccaccio escrevem e floresce o humanismo florentino.

A Idade Média não é um período exclusivo da civilização europeia
Ao mesmo tempo que a Idade Média ocidental, ocorre a do império do Oriente, que continua viva nos esplendores de Bizâncio durante mil anos depois da queda de Roma. Nestes mesmos séculos floresce uma grande civilização árabe enquanto na Europa circula mais ou menos clandestinamente, mas vivíssima, uma cultura hebraica. As fronteiras que dividem estas diversas tradições culturais não são tão nítidas como hoje se pensa (quando predomina a imagem do conflito entre muçulmanos e cristãos no decurso das Cruzadas). A filosofia europeia conhece Aristóteles e outros autores grecos através de traduções árabes, e a medicina ocidental vale-se da experiência dos árabes. As relações entre eruditos cristãos e árabes, ainda que não proclamadas em voz alta, são frequentes». In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN: 978-972-204-479-0.

Cortesia PdQuixote/JDACT