sábado, 14 de novembro de 2015

Idade Média. Umberto Eco. «… histórias que nos permitem compreender que o ferro se tornara naquela época tão raro que a perda da foice podia significar a impossibilidade definitiva de amanhar a terra»

Cortesia de wikipedia

Bárbaros. Cristãos. Muçulmanos
«(…) Mas o que caracteriza a Idade Média ocidental é a tendência para resolver todos os contributos culturais de outras épocas ou de outras civilizações segundo a perspectiva cristã. Quando hoje se discute se a constituição europeia deve mencionar as raízes cristãs da Europa, objecta-se com justeza que a Europa também tem raízes greco-romanas e raízes judaicas (basta pensar na importância da Bíblia), para não falar das antigas civilizações pré-cristãs e, portanto, das mitologias céltica, germânica ou escandinava. Mas é certo que no tocante à Europa medieval deve falar-se de raízes cristãs. Na Idade Média, a partir da época dos padres da Igreja, tudo é relido e traduzido à luz da nova religião. A Bíblia só será conhecida na tradução latina, a Vulgata de São Jerónimo, e em traduções latinas serão conhecidos os autores da filosofia grega, usados para demonstrar a sua convergência com os princípios da teologia cristã (e só a isso aspira a monumental síntese filosófica de Tomás de Aquino).

Os séculos medievais não são a Idade das Trevas, as Dark Ages dos autores
anglófonos
Se com esta expressão se pretende aludir a séculos de decadência física e cultural agitados por terrores sem fim, fanatismo, intolerância, pestilências, fomes e carnificinas, este modelo poderá ser aplicado, em parte, aos séculos que decorrem da queda do Império Romano até ao novo milénio ou, pelo menos, ao renascimento carolíngio. Mas os tempos anteriores ao ano 1000 foram um tanto ou quanto escuros porque as invasões bárbaras, que durante alguns séculos fustigaram a Europa, destruíram aos poucos a civilização romana: as cidades estavam despovoadas ou em ruínas, as grandes estradas já não recebiam cuidados e desapareciam nos matagais, estavam esquecidas técnicas fundamentais como a extracção dos metais e da pedra, as terras de cultivo estavam ao abandono e, antes do fim do milénio ou pelo menos antes da reforma feudal de Carlos Magno, zonas agrícolas inteiras eram de novo florestas.
Se, porém, formos em busca das raízes da cultura europeia veremos que nestes séculos escuros surgiram as línguas que hoje falamos e se instalou, por um lado, uma civilização dita romano-bárbara ou romano-germânica e, por outro, a civilização bizantina e que ambas modificaram profundamente as estruturas do direito. Nestes séculos agigantam-se figuras de grande vigor intelectual como Boécio (nascido exactamente quando o Império Romano se desmoronava e justamente chamado o último romano, Beda e os mestres da Escola Palatina de Carlos Magno, como Alcuíno ou Rábano Mauro, até João Escoto Eriúgena. Os irlandeses, convertidos ao cristianismo, fundam mosteiros onde são estudados os textos antigos, e são os monges da Hibérnia que reevangelizam regiões inteiras da Europa continental e inventam ao mesmo tempo uma originalíssima forma de arte da alta Idade Média, representada pelas miniaturas do Livro de Kells e outros manuscritos análogos.
Apesar destas manifestações culturais, a Idade Média anterior ao ano 1000 era de certeza um período de indigência, fome e insegurança em que circulavam histórias de um santo subitamente aparecido que recuperava uma foice que o aldeão deixara cair ao poço: histórias que nos permitem compreender que o ferro se tornara naquela época tão raro que a perda da foice podia significar a impossibilidade definitiva de amanhar a terra. Ao falar nos seus Historiarum Libri de acontecimentos ocorridos apenas 30 anos depois do fim do milénio, Rodolfo, o Glabro, descreve-nos uma escassez provocada por um tempo tão inclemente que, principalmente por causa das inundações, não se conseguia encontrar momento propício nem para a sementeira nem para a colheita. A fome tornava esqueléticos os pobres e os ricos, e, quando já não havia mais animais para comer, comia-se toda a espécie de bicho morto e outras coisas que só de falar causam calafrios, tendo havido quem se visse obrigado a ingerir carne humana. Os viajantes eram agredidos, abatidos, cortados em pedaços e cozidos, e aqueles que se deitavam ao caminho na esperança de fugir à fome eram degolados de noite e comidos por quem os hospedava. Havia quem atraísse crianças, mostrando-lhes um fruto ou um ovo, para as esganar e comer. Em muitos sítios foram exumados e comidos cadáveres: certo homem que levara carne humana já cozida para o mercado de Tournus foi descoberto e colocado na fogueira, mas depois foi também queimado outro que fora de noite tirar a carne de onde a haviam enterrado». In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN: 978-972-204-479-0.

Cortesia PdQuixote/JDACT