sábado, 14 de novembro de 2015

A Euforia Perpétua. Pascal Bruckner. «… saúde, riqueza, corpo, conforto, bem-estar, como tantos outros talismãs sobre os quais deve poisar, qual pássaro atraído pelo isco. Os meios tomam o lugar dos fins e revelam a sua insuficiência»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Desemboca no tédio ou na apatia a partir do momento em que se realiza (neste sentido a felicidade ideal seria uma felicidade sempre saciada, sempre renascida que evitaria a dupla pena da frustração e de plenitude). Por fim, ilude o sofrimento ao ponto de se encontrar desarmado perante ele a partir do momento em que surge. No primeiro caso a própria abstracção da felicidade explica a sua sedução e a angústia que origina. Não somente desconfiamos dos paraísos préfabricados como nunca estamos seguros de sermos verdadeiramente felizes. Querer saber se o somos é já sinal de o não sermos. Daí que a predilecção por este estado se encontre também ligada a dois comportamentos, o conformismo e a inveja, as doenças conjuntas da cultura democrática: o alinhamento pelos prazeres maioritários, a atracção pelos eleitos que a sorte parece ter favorecido. No segundo, a preocupação com a felicidade é contemporânea na Europa, na sua forma laica, do advento da banalidade, esse novo regime temporal que surgiu com o dealbar dos tempos modernos e viu triunfar a vida profana, reduzida ao seu prosaísmo, após a retirada de Deus. A banalidade ou a vitória da ordem burguesa: mediocridade, sensaboria, vulgaridade. Por último, um tal objectivo, visando eliminar a dor, substitui-a apesar de tudo no âmago do sistema. Ainda que o homem de hoje igualmente sofra por não querer mais sofrer, como também se pode adoecer à força de procurar a saúde perfeita. O nosso tempo conta-nos uma estranha fábula: a de uma sociedade dedicada ao hedonismo, para a qual tudo se torna causa de irritação e de suplício. A infelicidade não é só a infelicidade: é, ainda pior, o fracasso da felicidade.
Por dever de felicidade, entendo portanto essa ideologia própria da segunda metade do século XX e que conduz a tudo avaliar sob o prisma do prazer e do desagrado, esse convite à euforia que lança no opróbrio e na dor os que não lhe correspondam. Duplo postulado: por um lado, tirar o melhor partido da vida; pelo outro, afligir-se, penalizar-se por tal não ser conseguido. Perversão a mais bela das ideias: a possibilidade concedida a cada um de ser senhor do seu destino e de melhorar as suas condições de existência. Como pode uma das palavras de ordem emancipadoras das Luzes, o direito à felicidade, transformar-se em dogma, em catecismo colectivo? Esta é a aventura que aqui procuraremos contar. Tão múltiplos são os significados do bem supremo que nos iremos fixar então em alguns ideais colectivos: saúde, riqueza, corpo, conforto, bem-estar, como tantos outros talismãs sobre os quais deve poisar, qual pássaro atraído pelo isco. Os meios tomam o lugar dos fins e revelam a sua insuficiência a partir do momento em que o encantamento procurado não é alcançado. Se bem que, cruel engano, nós nos afastemos com frequência da felicidade através dos meios que verdadeiramente nos deveriam dela aproximar.
Daí os frequentes equívocos a seu respeito: que deve ser reivindicado como um dever, aprendido como uma matéria escolar, construído como uma casa; que se compra, qual moeda, que outros enfim o possuem de fonte segura e que basta imitá-los para sermos inundados como eles pela mesma aura. Contrariamente ao lugar comum sem descanso repetido desde Aristóteles, mas para ele a palavra tinha um outro sentido, não é verdade que todos nós procuraríamos a felicidade, valor ocidental e historicamente datado. Outros existem como liberdade, justiça, amor, amizade que ganham supremacia sobre ela. E como saber que todos os homens procuram desde a origem os tempos sem cair em generalidades vagas? Não se trata de estar contra a felicidade mas sim contra a transformação desse frágil sentimento num pensamento colectivo estupidificante perante o qual todos se deverão inclinar nos aspectos químicos, espirituais, psicológicos, informáticos, religiosos.
Os saberes e as ciências mais elaborados devem confessar a sua impotência para garantirem a felicidade aos povos e aos indivíduos. Esta, de cada vez que a afloramos, produz o efeito de uma graça, de um favor, não de um interesse, de uma conduta específica. E quanto mais conhecemos as bondades do mundo, a sorte, os prazeres, a ventura, mais abandonamos o sonho de atingir a beatitude com letra maiúscula. Teremos desde já desejo de responder ao jovem Mirabeau: amo de mais a vida para não querer ser feliz!

O paraíso está onde eu estiver. A vida como ilusão e desilusão
Este mundo não é mais que uma ponte. Atravessa-a mas nela não te detenhas. In Henn. Apócrifos. No século XV em França e em Itália, ocorreram autos-de-fé colectivos onde sobre as achas do prazer os homens e as mulheres de livre vontade e como sinal de renúncia às vaidades lançavam às chamas cartas de jogar, livros, jóias, perucas, perfumes. Acontece que nesse fim da Idade Média, marcado por uma forte paixão pela vida, a dúvida não era permitida: a plenitude só existia em Deus e fora d’Ele só havia engano e dissimulação. Era então necessário relembrar constantemente aos mortais a insignificância dos prazeres humanos, quando comparados com aqueles que lhes estavam reservados junto de Nosso Senhor. Contrariamente ao célebre aforismo de Saint-Just, a felicidade nunca foi uma ideia nova na Europa e desde as origens, fiel à sua herança grega, o cristianismo sempre lhe reconheceu a aspiração. Simplesmente coloco fora do alcance humano, no Paraíso Terreal ou nos céus, o século XVIII contentar-se-á em devolvê-la aqui para o mundo terreno». In Pascal Bruckner, A Euforia Perpétua, Ensaio sobre o Dever da Felicidade, tradução de António Belo, Editorial Notícias, 2002, ISBN 972-972-461-220-1.

Cortesia EditorialN/JDACT