segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A Esmeralda Partida Fernando Campos. «Separam-se e o judeu, sobraçando um embrulho, caminha lesto e curvado pela borda da água, guina à esquerda, atravessando o terreiro pela extremidade dos estaleiros em direcção ao Arco do Açougue»

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«(…) Um berro imenso acorda-me do delírio. Toda a gente se suspende a olhar. É uma aflição soprada como de um cano largo e desentupido, misturada com a gritaria de homens que se dão ordens desencontradas. A nau está acostada ao cais em frente da casota do guindaste. Na tolda, em redor da bocarra do porão, uma chusma de marinheiros olha para baixo. Da lança da grua, por cima das suas cabeças, grossa corda retesada vai mergulhar na escuridão da caverna, de cujas entranhas soa o brado atroador. Até as gaivotas num alor repentino desandaram para longe. No cais, de cada lado e a distância da máquina gigante, grupos de moços aguardam segurando compridas amarras que se vão também esconder no ventre do barco. No interior das duas grandes rodas gradeadas que ladeiam a viga aprumada do engenho, caminham de pés descalços degrau a degrau sem saírem do sítio, de tanga e tronco nu, os escravos mouros que fazem girar os mecanismos a recolher o cabo. Esforçados, estalam e arquejam os madeiros, que parecem prestes a rebentar. Algo muito pesado deve vir subindo e barregando do negrume. Os olhares param nas respirações contidas. Eis surge o monstro nunca visto. As pessoas em terra esboçam um arremedo de fuga, num calafrio, os cabelos em pé. Dorso pardo enrugado, a massa corpulenta enlaçada pela barriga nas voltas de cadeias de ferro em que vem prender o gancho, aí sai ele pendurado, a cabeça descomunal, orelhuda, o nariz prolongando-se num tubo que troa que nem mil trombetas, duas extensas presas recurvas de marfim de um e outro lado da boca. A cauda curta, na sua agonia a alimária vai despejando do cu pastelões de bosta que se desfazem pelo ar ou se esborracham fumegantes na coberta da nau, na borda do cais. Baloiça no espaço, as pernas como quatro cepos. Os moços puxam as cordas a iguarem o balanço do corpanzil. Lá desce devagar. Em baixo o mestre faz sinais com os braços a indicar o sítio do poiso: Mais avante! Houxe! Arreia! Assim..., à direita... Berra a besta o barrego curvando ao alto a comprida tromba, ringem as roldanas, trissa o eixo. Esperam-na no solo dois negros encorpados, com molhos de erva e legumes frescos e uma cesta de fruta, junto de uma selha com água limpa. Mal poisa no chão, um deles aproxima-se a fazer-lhe festas e a meter-lhe nas beiças penugentas torrões de açúcar, cenouras, punhados de verdura, enquanto o outro, ajudado pelos moços, desengancha o calabre e desata as cadeias.
O bicho sossega e o tratador leva-o à beira da tina a beber num sorvo lento e fundo. põe-se o ajudante a lavá-lo com baldadas de água, a limpá-lo com o esfregão e a incitá-lo, num linguajar cheio de risos, a não sei quê. Mostra entendê-lo o animal, que logo, por instantes, na selha mergulha o cano, retira-o, recurva-o sobre si e lança o líquido pelo costado. Sentindo-o manso, começam as pessoas a abeirar-se em volta. Ele repete três, quatro vezes a manobra, banhando-se de chuveiro enquanto os dois homens o vão escovando com vassouras encabadas em paus. Chega-se-lhe de novo o tratador junto da boca a oferecer-lhe mimos na palma da mão e a bichanar-lhe ao ouvido os seus segredos. Torna ele a meter na água o longo apêndice, a enchê-lo calmamente, recolhe-o erguendo-o e de repente desata a borrifar a toda a roda a assistência, que grita e foge esbaforida. Na pretidão das caras está-se rindo a alvura dos olhos e a neve da dentuça dos dois negros, que enxugam agora o animalejo, arreiam-lhe os lombos com uma manta colorida e a fronte com grinaldas de flores e enfeites de plumas. A um sinal ele ajoelha e os negros sobem-lhe ao cachaço, à espinha, iniciando-se uma caminhada pesadona e bamboleante por entre a multidão que bate palmas e dá gargalhadas e atira chufas. À frente já se postaram cavaleiros e peões e homens grados, direitos à Alcáçova, em demanda de ti, meu senhor. Deixo passar a turba e, logo que rareia, sigo de meu passo meditando em tudo o que vi. São estes, na realidade, sinais dos novos tempos, deste novo mundo que está surgindo e tudo modificando. Este Tejo que quase se lhe não vêem as ondas, tantos os galeões, naus, caravelas, galés, urcas, barcas, barinéis, de todas as nações, que nelas estão varando.
[…]
Separam-se e o judeu, sobraçando um embrulho, caminha lesto e curvado pela borda da água, guina à esquerda, atravessando o terreiro pela extremidade dos estaleiros em direcção ao Arco do Açougue. Como é por aí que pretendo regressar, aligeiro o passo e ponho-me a segui-lo. Perco-o de vista. Encolho os ombros. Que importa? Ele vai à sua vida e eu à minha. De novo no Pelourinho, chego-me enfim à casa a que venho encomendado. Empurro a porta, só encostada, e entro. Pequena quadra alumiada por escassa janela. Nas paredes, prateleiras pejadas de frascos, caixas, vasilhas com rótulos de plantas. Numa estante, aberto, o Liber lapidum de Marbodo, ao lado empilhados outros lapidários e gemários, um Hortus Salutatis, um Livro das Aves. A um canto, na pedra mármore pousada sobre a banca, o oficial manipula mezinhas que vai pesando numa balancinha de cobre. Fervem babugens de líquidos duvidosos em retortas de vidro. O ar está emprenhado de vapores, de cheiros indefiníveis, que causam picos na garganta e me fazem tossir. O oficial nem sequer levanta os olhos, mas uma cortina descerra-se num vão do fundo e um homenzinho curvo, de labita preta, vem ao meu encontro. Reconheço o judeu de há pouco no cais...» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT