sexta-feira, 30 de outubro de 2015

O Algarismo e o Número. O Número de Deus. José Corral. «Claro que és mais um dos meus aprendizes, mas ainda és demasiado pequena para algumas coisas. Vá, obedece. Ricardo agarrou Teresa pela mão, que saiu da catedral a resmungar»

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O Algarismo e o Número
«(…) No entanto, a ameaça do leonês não era o único problema de Castela. Desde que Fernando fora coroado rei em Valladolid, Álvaro Nuñes Vara, que durante a menoridade do rei Henrique detivera o poder, não tinha parado de conspirar contra o novo rei. Encorajado, Álvaro tinha desafiado a combater com ele numa justa todos os nobres castelhanos que tinham jurado obedecer a Fernando. A sua tentativa foi vã e acabou derrotado e aprisionado. Fernando deveria ganhar a nobreza. Em finais de 1217, Berenguela podia sentir-se satisfeita. O seu filho Fernando era rei de Castela, as famílias mais poderosas, como os Girón, os Haro ou os Telles, e os grandes concelhos urbanos do reino, como Burgos, Palência, Valladolid, Toledo, Ávila ou Segóvia, tinham-no aceitado unanimemente, e o único dissidente, o senhor de Lara, estava em bom recato. O caminho de Fernando para construir a grande Castela que dona Berenguela sonhara para o filho estava livre de obstáculos.
A pequena Teresa tinha sentido medo, um dos cónegos da catedral burgalesa irrompera no templo anunciando aos-gritos que o rei de Leão se aproximava com um poderosíssimo exército disposto a arrasar a cidade e a degolar todos quantos nela moravam se não se submetessem ao seu domínio. Entre os aprendizes da oficina de pintura de Arnal Rendol levantara-se uma agitação ao ouvirem o exaltado cónego que ameaçava com as mais terríveis calamidades se Afonso de Leão entrasse em Burgos. Arnal falou com o pessoal da oficina, que estava afadigado em ultimar o grande fresco da Visitação da Virgem. Se o que este cónego disse é verdade, o nosso trabalho pode estar a chegar ao fim. Em qualquer caso, fomos encarregados de realizar este fresco e eu, pelo menos, penso acabá-lo caso seja possível. Mas no que vos respeita, aquele que deseje ir para casa pode fazê-lo. Os que quiserem ficar comigo a terminar o espaço caiado hoje... Ficamos todos, interveio Ricardo, o primeiro-oficial da oficina. Não é assim?
O resto dos oficiais e aprendizes assentiram com a cabeça. Agradeço-vos a todos. Tu, Ricardo, disse ao oficial, pega em Teresa e leva-a para a minha casa. Diz à criada que feche bem a porta e que não saiam de lá enquanto eu não voltar. Eu quero ficar contigo, pai, protestou a menina. Disseste que seria mais um dos teus aprendizes. Já ouviste o que eu disse, Teresa. Claro que és mais um dos meus aprendizes, mas ainda és demasiado pequena para algumas coisas. Vá, obedece. Ricardo agarrou Teresa pela mão, que saiu da catedral a resmungar. Quando regressou, o primeiro-oficial informou que os leoneses tinham acampado muito perto de Burgos, mas que toda a cidade estava do lado de Fernando e de dona Berenguela, e que os defensores tinham jurado não se render. É curioso, esta cidade foi povoada por franceses e pelos seus descendentes, por bascos e judeus e ainda restam mesmo alguns sarracenos, mas nos momentos mais perigosos todos se sentem, antes de tudo, castelhanos. Bom, reflectiu Arnal, nós nada podemos fazer. Voltemos ao trabalho, esta cal não se vai manter eternamente húmida. Quando o rei de Leão se retirou para os seus domínios, todos respiraram aliviados. Fernando conseguiu ganhar a estima e respeito dos burgaleses». In José Luís Corral, El Número de Deus, 2004, O Número de Deus, O Segredo das Catedrais Góticas, tradução de Carlos Romão, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.

Cortesia de Planeta Editora/JDACT