sábado, 31 de outubro de 2015

Casas Pardas no 31. Maria Velho Costa. «Elisa não ocupou ainda decisivamente a que deverá ser a sua casa, casa a descobrir, a habitar, a assumir, para lá da consumação da separação. Atrium é, por sua vez, o título do primeiro…»

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«A mais visível e evidente organização do romance é em cinco sequências de casas. As duas primeiras e as duas últimas são constituídas por três casas, a sequência central, a terça casa, é um fingimento de texto dramático, organizado já não em três capítulos mas em três actos. Cada casa é designada por um algarismo, que indica a sequência em que está incluída (I, II, IV e V), pelo nome próprio da personagem que a ocupa, e por um título, que é o nome próprio do texto que constitui a casa. Maria Alzira Seixo mostrou já a polissemia desses títulos, o modo como são atravessados por um complexo intrincado significativo. Insistamos em que cada palavra ou sintagma titular é múltipla e diversamente reinvestido semanticamente pelo texto do capítulo, que de diversas formas integra reescritas dessas palavras ou sintagmas. Anote-se apenas que a I casa se intitula Vaga (casa de Elisa) e a última Atrium (casa de Elvira). Vaga é, entretanto, também o título do terceiro e último bloco narrativo do romance anterior de Maria, Maina Mendes. O eco é de várias formas significativo. Significativo dos modos como a coerência do percurso literário se constrói, significativo dos fios que unem, nas suas ciaras diferenças, os dois romances. Articulação possível e aliciante entre Matilde, a filha amada pelo pai, a filha que cumpriu separação (até política), e que estando longe anuncia o regresso, e Elisa. Como entre a avó Maina, a Muda, e a bisavó Elisa, a Douda. Como entre a mudez rebelde de Maina, a procura de escrita de Elisa e a exiguidade de palavras de Elvira. Nesse último bloco do primeiro romance, vaga pode-se dizer da casa onde Matilde ainda não voltou, onde o seu pai se suicidou já, da casa onde a avó Maina trabalha e espera. Vaga quer dizer a suspensão, na qual termina esse romance. Como, aqui, em Casas Pardas, vaga está a casa de Elisa, no sentido em que esta está em suspenso, no sentido em que Elisa não ocupou ainda decisivamente a que deverá ser a sua casa, casa a descobrir, a habitar, a assumir, para lá da consumação da separação. Atrium é, por sua vez, o título do primeiro (e último) capítulo de Elvira na sua nova casa, e diz esse lugar como o do início de uma nova habitação. Entre uma casa Vaga e uma casa Atrium se move este romance, entre o seu início e fim; entre uma abertura em suspenso e um final de abertura: Vaga e Atrium, dialéctica da ainda ausência e da promessa de presença, ambos lugares para dizer um movimento e os seus modos; gestos, figurações, apelos ao movimento. A sucessão das sequências acompanha, como o próprio texto da primeira casa da última sequência o exibe (passagem citada em epígrafe), a sucessão dos dias e das noites: I - manhã, II – entardecer e noite, / terça casa - noite /, IV - manhã, V – noite (a V Casa de Elvira é de manhã à noite). Na primeira, segunda e quarta sequência, a sucessão das casas, repete a ordem dos nomes próprios das personagens: Elisa, Elvira, Mary; e organiza-se segundo o paradigma dos pronomes pessoais Eu (Ehsa), Tu (Elvira), Ela (Mary). O papel organizador da sequência dos pronomes pessoais (como o mostrou Margarida Barahona) evidencia-se pelo facto de, na última sequência, se alterar a ordem nominal das casas, mantendo-se, entretanto, invertida agora, a ordem dos pronomes pessoais. Assim: Elisa, ela, Mary, tu, Elvira, eu. A sequência e o livro fecham assim sobre a nova casa de Elvira que diz eu. A terça casa, por sua vez, imitação de teatro, sequência central, é a única em que as três personagens das casas se reúnem, se encontram num espaço, numa casa. Note-se entretanto que tal encontro só se dá nos actos terminais, no primeiro e no terceiro, que são os actos na cozinha, enquanto o do meio é na sala de jantar e aí apenas se encontram, com outras personagens, Elisa e Mary. Pelo próprio efeito de o texto se distribuir em falas, todas estas personagens dizem eu, são invocadas pelo tu (ou forma correspondente) e são referidas na 3.ª pessoa». In Maria Velho da Costa, Casas Pardas, 1986, Assírio e Alvim, Porto, 2013, 978-972-371-689-4.

Cortesia AAlvim/JDACT