terça-feira, 20 de outubro de 2015

A Marginalia Satírica nos cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal. Maria M. Braga. «Fechados aos olhares da sociedade, dão livre curso a toda uma tradição satírica e popular em que o lema ridendo castigat mores se transforma também numa liberdade ímpar dos artífices…»

Cortesia de wikipedia

«Os cadeirais de coro medievais devem ser os locais em que a decoração melhor espelha o cariz estremado e contraditório da realidade religiosa e social da época. Na sua decoração conflui pacificamente o sagrado e o profano, erudito e popular, o quotidiano e a lenda, numa série de referências históricas ancestrais. Esta tradição desenvolve-se na marginalia que decorre nos locais mais escondidos como as misericórdias (as misericórdias consistiam em mísulas adossadas à parte inferir das cadeiras, que serviam de apoio aos religiosos aliviando-lhes o cansaço sem que perdessem a obrigatória postura em pé. O facto de ficarem escondidas, acrescido ao próprio uso a que se destinava, explica em grande parte a aceitação de cariz tão licencioso e profano), apoia-mãos e platibandas de apoios dos livros corais, interpenetrando-se com a icnografia de cariz sacro, amplificada em locais mais destacados dos espaldares e coroamento superior. Estes espaços secundários funcionam como depósito de temas populares, ao sabor da memória dos artífices que livremente os esculpiam, transformado o cadeiral num imenso livro sagrado que se faz declinar como uma enciclopédia. Fechados aos olhares da sociedade, dão livre curso a toda uma tradição satírica e popular em que o lema ridendo castigat mores se transforma também numa liberdade ímpar dos artífices deixarem a marca profana e popular tacitamente aceite pelas entidades religiosas. Nos dois únicos exemplares medievos que chegaram até nós, o cadeiral do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e o exemplar da Sé do Funchal, a gramática das formas e anotações ao tempo e que se vivia convivem com este gosto do riso, na memória de contos, provérbios e tradições orais que com elas se cruzam.

O mundo feminino às avessas
Tradicionalmente, a castidade feminina era representada pela imagem de uma jovem sentada a fiar com a roca e o fuso pois, como dizia o ditado: a fiar e a tecer ganha a mulher de comer. No entanto, o casto modelo nem sempre era seguido e a sátira literária e iconográfica encarregou-se de glosar a sua inversão. O bestiário satírico costumava representar uma javali atarefada na fiação doméstica como sinónimo de prostituição. Encontramo-la numa das misericórdias do cadeiral da Sé do Funchal, idêntica a outras javalis-fiadeiras como se podem observar nos cadeirais de Kempen na Alemanha; Ciudad Rodrigo; Toledo ou da igreja de S. Nicolau em Amsterdão, bem como em gárgulas e gravuras da época.
Neste caso, os atributos luxuriosos da simbologia animal sintonizam-se semanticamente com o verbo fiar, usado como sinónimo de prostituição. Isabel Gomez Mateo, localizou o tema na tragicomédia La Celestina, de Fernando Rojas, editada em Burgos no ano de 1499. No terceiro acto da peça, a velha alcoviteira que trata de tecer as tramas dos amores dos jovens, lamenta que pocas vírgenes, a Dios gracias, has tú visto en esta ciudad que hayan abierto tienda a vender de quien yo no haya sido corredora de su primer hilado. E mais adiante insiste-se na associação entre o fuso e o falo masculino: con mal está el huso cuando la barba no anda de suso. Por cá Gil Vicente faz alusão ao enfado que o casto lavor provocava em jovens casadoiras. Na Farsa Quem tem Farelos a jovem casadoira queixa-se que Faz a moça mui mal feita, corcovada, contrafeita, de feição de meio anel; e faz muito mal carão, e mal costume dolhar.
E a Inês Pereira que antes quer asno que a carregue que cavalo que a derrube, também estava disposta a tudo para se ver livre dessas canseiras inúteis, renegando deste lavrar e do primeiro que o usou; ó diabo que o eu dou, que tão mau é d’aturar. Por vezes as aparências iludem, a velha rameira Celestina ou a Brígida Vaz do Auto da Índia quando se lembram da roca e do fuso não parece ser em púdico tarefa caseira que estão a pensar, quero fiar e cantar / segura de o nunca ver suspirava a abandonada mulher do mercador embarcado desejando que ele não tornasse vivo a Lisboa. Um ditado da época lembrava de forma mais explícita este mundo às avessas: quando a rameira fia, o letrado reza, e o escrivão pergunta quantos são do mês, mal vai a todos três. Esta relação satírica foi recuperada por Goya que não esquece as fiadeiras nas suas gravuras satíricas. No Álbum B que antecede os Caprichos assim representa as raparigas de má vida, tonsuradas e encerradas no reformatório, acrescentando a legenda irónica: San Fernando como hilan! Mais tarde serão representadas a depenar os frangos que se deixam apanhar nas suas teias». In Maria Manuela Braga, A Marginalia Satírica nos cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal, Revista Medievalista, director Luís Krus, Ano 1, Nº 1, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2005, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT