quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Uma pequena vila. Galveias. José Luís Peixoto. «As velhas, de xaile pela cabeça, só a mostrarem os olhos e a ponta da testa, foram as primeiras a recolher-se. O frio acabou por vencer aquela meia hora, invernia de má raça»

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«Escuta lá, de quem é que tu és filho? Sou o filho do Peixoto da serração e da Alzira Pulguinhas»

Janeiro de 1984
«(…) Só a ti Adelina Tamanco, arrumada ao poial de casa, sussurrava que tinha sido muita força de bruxedos. Não queria que se ouvisse porque sabia que a viva voz chamaria esses bruxedos e, dava para ver, tratava-se de trabalhos feios, horrorosos, que ninguém quereria para si, Deus livre. O Joaquim Janeiro dizia que era a guerra, os americanos, filhos de um rancho de pu… Cada um dizia o que queria, mesmo sem noção. A ti Inácia, arrumada à casa do prior, defendia que tinha sido o Espírito Santo. Afirmava isto e ficava a olhar para o padre Daniel, à espera de comentário que a apoiasse, mas ele fingia que não ouvia e foi o primeiro a queixar-se de frio, realmente estava fresco. Em frente à loja do Bartolomeu, o próprio Bartolomeu, com umas ceroulas bastante manchadas, acreditava que tinha sido uma trovoada eléctrica.
Segundo ele, era um jeito de tempestade, mas com trovões, tipo bombo, e eléctrica. Um terramoto? Chegou a falar-se nisso à porta da loja, mas não deixaram que tivesse um segundo de lógica porque, se fosse um terramoto, o chão teria tremido. As certezas eram muito miúdas, tinham de ser catadas com a pontinha dos dedos. A ti Silvina, à porta da casa dela, puxou a menina Aida e disse-lhe que sabia de onde vinha aquele caso. Quando a outra se dispôs a ouvir, após uma pausa de expectativa, disse-lhe que eram as obras do metro. No Verão, quando a filha veio de férias, contou que lá na Inglaterra andavam a fazer obras do metro ao pé da casa dela e não havia sossego, era um transtorno tal e qual como aquele. A menina Aida continuou a olhar para ela muito séria e encolheu os ombros. Sim, talvez andassem a fazer obras do metro, era uma possibilidade.
As velhas, de xaile pela cabeça, só a mostrarem os olhos e a ponta da testa, foram as primeiras a recolher-se. O frio acabou por vencer aquela meia hora, invernia de má raça. Quando começaram a repetir assunto, as pessoas foram-se apercebendo das orelhas geladas, dos pés gelados, da maré de gelo que entrava por debaixo da roupa e se esfregava até nos refegos mais agasalhados. As crianças custaram a voltar para casa. Estavam já prontas para ficar ali o resto da noite. As mulheres da boîte quiseram aproveitar para seduzir clientela, prometeram bebida de borla e alguns favores sem compromisso. Sem saber para onde se virar, o Miau andava atrás delas, com a língua de fora, a rir-se sozinho. Quem se esforçou mais nesses sorrisos foi a Isabella, brasileira de camisola caicai e com uma mancha de farinha nas calças de licra, a cobrir-lhe a nalga direita. Fazia lembrar as brasileiras das telenovelas, mas não teve sorte. Havia muita gente a olhar para que algum tivesse a ousadia de seguir o convite. Além disso, o pessoal andava pouco abonado. Além disso, era pouco provável que alguém estivesse com disposição. A mãe do Miau chegou à procura dele e conseguiu levá-lo. Mas o último a entrar em casa foi o Catarino. Quando os vizinhos fecharam as portas, foi buscar a motorizada à garagem. A avó tentou dissuadi-lo: Ó Nuno Filipe, vai-te deitar, rapaz. Mas não se empenhou a fundo porque sabia que não valia a pena. O Catarino passou devagar por todas as ruas da vila, mas já não encontrou ninguém». In José Luís Peixoto, Galveias, Quetzal Editores, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-722-179-8.

Cortesia de Quetzal/JDACT