quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Piratas em Buarcos. Digressão Épica na Oração de Sapiência do padre Francisco Machado. 1629. Carlota Urbano. «Ε calcaram eles a seus pés todo o poderio dos portugueses. Ninguém há que se atreva contra as sua máquinas de guerra? Ninguém!»

Cortesia de wikipedia

Reavaliação dos Critérios de Produção Literária do Século XVI
«(…) Para demonstrar que a Sabedoria é o nervo da guerra e é, por isso, fundamental à nação, Francisco Machado evoca então um caso que havia poucos meses sucedera envolvendo a Academia. Trata-se de um ataque de piratas holandeses a Buarcos, que devastou o lugar e profanou as igrejas. Depois de captar a atenção do auditório, Francisco Machado confronta-o com a crueza do sacrilégio infligido aos altares, sacrários e imagens de santos, movendo-o à indignação contra a desonra das imagens, descrevendo a sua destruição como se de corpos vivos se tratasse. A atenção que Machado dá ao quadro das imagens destruídas é, de resto, compreensível, pois a sua profanação era um rito habitual nos ataques de piratas protestantes à nossa costa (radicado em purismos bíblico-fundamentalistas, era usual o comportamento iconoclasta dos reformados ante a religiosidade católica nos conflitos religiosos da Reforma. Ficou paradigmático deste comportamento o saque de Roma (1527) às mãos dos lanzichenechi do, embora catolicíssimo Carlos V. Também entre nós se registara o mesmo comportamento contra a imagem; é o que sucede, por exemplo, no ataque de 1602, conforme o relato de Nicolau, na Crónica da Ordem dos Cónegos regrantes do Patriarca St-Agostinho , Lisboa 1688, & assi forão roubando tudo muito a seu salvo, & depois fizerão o mesmo nas Igrejas, e onde quebrarão todas as Imagens; este comportamento repete-se depois em 1629 como relata Francisco Machado e confirma o testemunho de Faria, saquearam os hereges a villa, deixando os sinaes desta impiedade nos templos e imagens). Dando largas à expressão do seu horror pelas atrocidades que os piratas cometeram, Francisco Machado lança invectivas sobre os batavos e apela às emoções do auditório lançando sobre ele uma série de interrogações retóricas para concluir que o povo não lutou nem ofereceu resistência por meio da guerra porque faltou a Sabedoria.
Ainda há meses, bem pouco há, disso vistes um claro exemplo. Vós que o não vistes, prestai-me os ouvidos ignaros; mas vós, também, que o vistes; quiçá lembrá-lo vos aproveite. Expugnam os inimigos, para suma desonra do nosso nome, a praça de Buarcos; aos telhados dos moradores se lançaram chamas; nem com as igrejas houve temperança. Ó desmedida ousadia! Entra a caterva desavergonhada dos batavos, a bem dizer, flagelo das nações, pelos templos consagrados; sujam pés profanos as sagradas capelas dos santos, arrombando, violando, desnudando aquelas paredes de seus ornamentos e preciosos ex-votos, depredando altares, delapidando aras, despojando sacrários. Aquelas imagens dos santos que eu, por sua tão alta dignidade, por religião, não ouso nomear, arrogantemente deitam por terra decepando-lhes as mãos, destroncando-lhes as cabeças, dispersando-lhes os membros. O flagelo imundo! Ousaste entrar em aquelas santas moradas, transpor aqueles sagrados umbrais; ostentar a face imunda aos santos imaculados, deitar as ímpias, malvadas mãos a tão santas e formosas imagens de santos? Tu, entre os mortais a mais vil, iníqua, criminosa gente, (se é que entre os homens és digna de algum lugar) ousaste decepar os corpos da corte celestial que ninguém sem horror poderia tocar, que ninguém sem religião poderia contemplar? Ó execrável torpeza! Ó malvadez que por sua atrocidade nunca há-de ser expiada.
Não é, senhores, algum crime imaginário que estou lembrando, mas um verdadeiro, não de que se ouviu, mas que se viu, não são quaisquer as testemunhas que invoco, mas de nomeada; e que, se posso eu mesmo citar-me como testemunha? Sou-o, não pelo que ouvi, mas pelo que vi. Com estes olhos, com estes próprios olhos vi apagadas as luzes dos santos, vi-lhes soltos os membros decepados; com estas mãos, com quanta devoção pude, tomei as mãos dos santos nossos patronos, e em que estado as tomei! Ó Deus imortal, porque não vingais tão torpe injúria arremessada aos vossos santos? Aquelas mãos santíssimas que tantas vezes sentira era meu favor pias, generosas, liberais, meio queimadas as tomei, quebradas, profanadas. Que fazeis, Portugueses? Que esperais ainda? Ó vergonha! Onde está a glória invicta de Portugal? Onde a força dos vossos maiores? Ninguém há que abata a cabeça desses arrogantes, desses malvados?! Ninguém! Ε calcaram eles a seus pés todo o poderio dos portugueses. Ninguém há que se atreva contra as sua máquinas de guerra? Ninguém! Em todos tolheram a coragem. A custo alguém houve que aos malvados fizesse frente. Porquê? Faltava dinheiro? Dinheiro havia. Então porquê? Desertaram soldados? Alguns pelejaram. Então? Não havia armas? Logo as houve. Que faltou então? A Sabedoria». In Carlota Miranda Urbano, Piratas em Buarcos, Digressão Épica na Oração de Sapiência do padre Francisco Machado, 1629, Revista Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT