sábado, 19 de setembro de 2015

Os Venenos da Coroa. Maurice Druon. «Estremecemos ao pensar no que é preciso de buscas para chegar à verdade sobre o mais fútil pormenor. Houve anos menos prósperos que outros, períodos de crise e de revolta»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Filipe, o Belo, morrera há seis meses. A França devia ao governo desse monarca prodigioso os benefícios de um longo período de paz, o abandono das desastrosas aventuras de além-mar, a instalação de uma poderosa rede de alianças e de suseranias, aumentos notáveis do território por uniões e não por conquistas, uma expansão económica certa, uma relativa estabilidade da moeda, a não ingerência da Igreja nos negócios temporais, o refreamento das potestades do dinheiro e dos grandes interesses privados, o acesso das classes populares aos conselhos do poder, a segurança dos cidadãos, a organização da autoridade do Estado. Por certo, os contemporâneos não tinham de tal modo consciência deitadas essas melhorias. Jamais progresso quis dizer perfeição. Houve anos menos prósperos que outros, períodos de crise e de revolta; as necessidades populares estavam longe de serem satisfeitas. O Rei de Ferro tinha certa maneira de se fazer obedecer que não agradava a todos e ocupava-se mais com a grandeza de seu reino que com a felicidade particular de seus súditos.
Não obstante, quando ele desapareceu, a França era a primeira, a mais forte, a mais rica de todas as nações do mundo ocidental. Não foram precisos menos de trinta anos de perseverança aos seus sucessores para destruir-lhe a obra e a ambição desmedida revezando-se no trono com o excesso de incapacidade, franquear o país à invasão, entregar a sociedade à anarquia e reduzir o povo à mais baixa situação de miséria e desespero. Na longa série de vaidosos imbecis que, de Luís X, o Turbulento, a João, o Bom, inclusive, irão usar a coroa, um único fará excepção: Filipe V, o Longo, segundo filho de Filipe, o Belo, que retomou os princípios e os métodos do pai, malgrado a vontade de reinar o tivesse levado a auxiliar crimes e a criar leis dinásticas que deram, como resultado, a Guerra dos Cem Anos.
A empreitada de demolição vai, pois, prosseguir durante um terço de século, mas devemos reconhecer que desde os primeiros seis meses boa parte do trabalho já tinha sido feita. As instituições não estavam bastante consolidadas para poder funcionar sem a intervenção pessoal do soberano. O fraco, o nervoso, o incompetente Luís X. esmagado pela sua tarefa desde o primeiro dia, descarregava facilmente os cuidados do poder em seu tio Carlos de Valois, bom, militar, parece, mas político detestável, que em vão passara a vida toda correndo atrás de um trono, e cuja turbulência sediciosa encontrava agora onde se empregar. Os ministros burgueses que tinham feito a força do reinado precedente, estavam presos, e o esqueleto do mais notável dentre eles, Enguerrand de Marigny, antigo assistente geral do reino, secava nos ganchos do cadafalso de Montfaucon.
A reacção triunfava; as ligas baroniais semeavam a desordem nas províncias e colocavam em xeque a autoridade real. Os grandes senhores, a começar por Carlos de Valois, fabricavam moedas, que punham em circulação através de todo o território para seu proveito pessoal. A administração, entregue a si mesmo, pilhava por seu lado, e o Tesouro estava vazio. Uma colheita desastrosa, seguida de um Inverno excepcionalmente rigoroso, criara uma fome geral. A mortalidade aumentara. Durante esse tempo, Luís X preocupara-se sobretudo com restaurar sua honra conjugal e apagar, se fosse possível, o escândalo da torre de Nesle. Na falta de um papa, que o conclave não conseguira eleger, e que teria podido decretar a anulação de seu casamento, o jovem rei de França, para poder casar-se novamente, mandara estrangular a esposa, Margarida de Borgonha, na prisão do Castelo Gaillard. Tornara-se, assim, livre para desposar a bela princesa napolitana que lhe tinham destinado e com a qual se dispunha a partilhar as felicidades de um longo reinado.

A França esperava uma rainha. Adeus a Nápoles
Em pé, junto a uma das janelas do enorme Castelnuovo, de onde a vista dominava o porto e a baía de Nápoles, a velha rainha-mãe Maria da Hungria olhava um navio prestes a zarpar. Assegurando-se de que ninguém podia notar-lhe o gesto, enxugou, com um dedo ríspido, as lágrimas que lhe vinham às pálpebras sem cílios. Bem, agora posso morrer, murmurou. Tinha empregado bem a sua vida. Filha de rei, esposa de rei e avó de reis, firmara parte de sua descendência no trono da Itália meridional, enquanto obtinha para a outra, à força de lutas e intrigas, o reinado da Hungria, que considerava como sua herança pessoal. Seus filhos mais moços eram príncipes, ou duques soberanos. Duas de suas filhas eram rainhas, uma em Maiorca, outra em Aragão. Sua fecundidade havia sido um instrumento de poder para os Anjou-Sicília, esse ramo mais novo saído da árvore capetiana, que começava a estender-se sobre toda a Europa e ameaçava tornar-se tão grande quanto o tronco. Se Maria da Hungria já perdera seis filhos, tivera, ao menos, o consolo de terem morrido piedosamente, como os havia educado; um deles, mesmo, aquele que renunciara aos direitos dinásticos para professar, cedo fora canonizado. Como se os reinos deste mundo se tivessem tornado muito pequenos para esta família tentacular, a velha rainha estendeu sua progenitura até o reino dos céus. Ela era a mãe de um santo. Setenta anos passados, restava-lhe apenas assegurar o futuro de uma de suas netas, a órfã Clemência. Isso já era, aliás, facto consumado». In Maurice Druon, Os Venenos da Coroa, 1956, tradução Alcântara Silveira, colecção Cavalo de Tróia, Gótica, 2006, ISBN 978-972-792-165-2.

Cortesia de Gótica/JDACT