segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Os Caçadores de Livros. Raphael Jerusalmy. «Dizei a Luís, ‘o Prudente’, que o seu bom súbdito Villon, ainda que muito ocupado por outros assuntos, ignorará todos os outros negócios aprazados com o propósito somente de lhe agradar»

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«(…) O rei de França procura enfraquecer o poder do Vaticano, a fim de consolidar o seu próprio poder. Ora, uma indústria nascente vem de súbito minar a supremacia papal. Ao contrário dos monges copistas, a imprensa não se encontra sujeita à Igreja. Habilmente utilizada, poderia conferir muita força aos que se assegurassem do seu controlo. É, por conseguinte, lamentável que ainda não existam prensas de impressão em França. O bispo fita Villon directamente nos olhos, procurando o obter toda a sua atenção. Fala num quase sussurro. Os bandidos e os livreiros servem-se dos mesmos canais clandestinos para fazerem circular as suas mercadorias iludindo os censores e os guardas. Por isso, é a um salteador, Colin de Cayeux de seu nome, do bando cuja insígnia é uma concha, e chamado por isso de coquillards, que será confiada a missão de seguir as acções e os gestos de Johann Fust. O primeiro espia-o desde há meses. Fust abriu várias oficinas nas regiões vizinhas do reino, mas continua sem as abrir em França. Colin de Cayeux recomendou o seu bom amigo Villon, também coquillard, como o homem mais capaz para convencer o impressor alemão a vir instalar-se em Paris. Precisais, em suma, de um malfeitor, monsenhor.
Sim, mas que seja também um fino letrado. François aceita o cumprimento com um movimento da cabeça. Devolve o exemplar da ResPublica a Chartier, abstendo-se de revelar ao prelado que conhece muito bem esse texto e que, não menos do que Luís XI, compreende o seu alcance político. Platão descreve nele uma nação regida por um monarca cuja autoridade excede a dos sacerdotes e a dos senhores, em nome do bem comum. Villon reflecte um momento. As ambições de um jovem rei preocupado com a consolidação do seu regime são fáceis de compreender. Mas que desígnio visa, afinal, o tal Fust, um simples mercador de livros? O bispo começa a tamborilar o tampo da mesa com a ponta dos dedos, deixando assomar um esgar de exasperação. Os pavios das velas emergem à tona da cera fundente. Os seus reflexos ténues dançam no cristal da garrafa. François levanta o rosto, arvorando um mordiscar de lábios cuja tola simplicidade demasiado vincada raia a insolência.
Dizei a Luís, o Prudente, que o seu bom súbdito Villon, ainda que muito ocupado por outros assuntos, ignorará todos os outros negócios aprazados com o propósito somente de lhe agradar. O tamborilar dos dedos cessa no mesmo instante. O esgar impaciente de Chartier é substituído por um sorriso sacerdotal. Fust e o seu genro estarão presentes na grande feira de Lyon. Terão lá a sua banca. O teu amigo Colin não os perderá de vista. Assim que tiver transitado a tua comutação de pena, irás ter com ele. A minha diocese fornecer-te-á meios que te servirão de engodo para atrair esse impressor. Mais um pouco de vinho? François estende o copo. O líquido que nele se derrama trauteia um estribilho agradável. O prelado e o recluso brindam com um ar de entendidos. François, já muito embriagado, abstém-se de saltar da cadeira para dançar a bourrée à volta da mesa. Baixa os olhos, fingindo uma humildade reconhecida, sem ver mais do que a toalha bordada, as iguarias que arrefecem no fundo das travessas, o peito do bispo que, a cada inspiração, dilata a cruz escarlate. Sabe a que ponto Guillaume Chartier o detesta. E o inveja. Porque, dos dois, naquela enxovia, é de facto François quem é verdadeiramente livre, sem amarras, e sempre assim foi». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.

Cortesia de CAutor/JDACT