quinta-feira, 10 de setembro de 2015

O Oficial Secreto. Catherine Jinks. «Talvez ele fosse capaz de evitar todos os inquisidores. Duvido, contudo; ele sempre foi um tolo. Lembro-me da última vez em que nos encontrámos, há doze anos. Foi em Prunet, por volta da Candelária…»

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A inquisição (maldita) e os meandros da espionagem. 1321
«Estou bem situado, aqui. A localização foi escolhida cuidadosamente. Estando eu sentado nesta janela, ninguém consegue aproximar-se da minha casa sem ser visto. Partilho uma parede com cada um dos meus vizinhos laterais. Na parte de trás, o pátio fica junto da muralha da cité. E, a face ocidental da minha casa dá para o fim de uma rua conhecida como Rua do Coto, devido ao facto de estar cortada como um membro amputado. A partir do meu assento nesta janela, consigo ver toda a Rua do Coto, assim como uma parte da Rue de Sabatayre, que fica do outro lado. Estas ruas não costumam ser frequentadas por estranhos. Os peregrinos raramente passam por elas, motivo que explica o facto de não haver estalagens nas proximidades. Os marinheiros e os pescadores preferem os subúrbios de Villeneuve. O Mercado Velho fica demasiado longe. Por isso, consigo reconhecer a maior parte dos rostos que vejo ao longo do dia.
Aquele rosto além, por exemplo, pertence ao meu inquilino, Hugues Moresi. Está de partida para comprar vinho; quando voltar, estará bêbedo, baterá na esposa e eu terei de fingir que nada ouvi. A mulher junto ao poço é a minha vizinha meridional. Apesar de não conseguir ver-lhe a face, reconheço o seu vestido rubro e os enfeites verdes do seu manto. Está a falar com o marido, que acaba de voltar de um moinho ou de uma padaria. (Ele tem farinha nas botas). O único estranho que avisto está a ir-se embora, na direcção da Rue de Sabatayre. Caminha como um homem que não está habituado à turba, com as suas largas passadas de camponês a transformarem-se em passinhos gaguejantes, à medida que tenta esquivar-se aos pedestres mais ágeis. A sua camisola interior é de lavor barciniano, no qual um fio escarlate se cruza com outro fio vermelho-cereja. O que significa que ele deve vir do ocidente.
Mas é um estranho, Não se trata de Armand Sanche. Eu seria capaz de reconhecer Armand Sanche até mesmo de costas. Quando o vi hoje, reconheci-o instantaneamente, apesar de, agora, ter o cabelo cinzento e o nariz partido. Ele também me reconheceu. Sobressaltou-se, arregalou os olhos e virou a cabeça para o outro 1ado. Depois, fugiu como uma lebre pela rua lateral mais próxima. Eu não sabia dizer se ele estava em Narbonne como um mero visitante ou se agora residia aqui. Apesar de a sua capa ser feita com o tecido castanho pelo qual esta cidade é famosa, é bastante fácil comprar tecido narbonês em qualquer parte do mundo. É possível viver na Sicília e, mesmo assim, estar-se vestido como um cidadão de Narbonne. Que faz ele aqui? Esconde-se, sem dúvida. Estava com medo de mim, pelo que deve ser um fugitivo. Talvez tenha escapado da prisão. Talvez tenha sido sentenciado a usar uma cruz amarela e, depois, a tenha arrancado das roupas. Talvez, em troca de liberdade, ele tenha prometido localizar e prender alguns dos seus companheiros heréticos. Se assim for, falhou no cumprimento da sua promessa. Estava escrito na sua face.
Talvez ele fosse capaz de evitar todos os inquisidores. Duvido, contudo; ele sempre foi um tolo. Lembro-me da última vez em que nos encontrámos, há doze anos. Foi em Prunet, por volta da Candelária, e estávamos a dormir num estábulo junto de ovelhas e bois. Isto aconteceu em parte pelo calor, mas também porque ambos nos escondíamos. Armand era uma das muitas almas crédulas que tinham abandonado a razão para seguir Pedro Autier, o famoso sacerdote dos cátaros. E eu estava a imitá-lo o melhor que podia. Helié, perguntou ele, enquanto estávamos deitados sobre a palha, tentando partilhar um lençol de solteiro já puído, já tiveste a oportunidade de ouvir os Bons Homens falar acerca dos espíritos malignos?» In Catherine Jinks, O Oficial Secreto, Confissões de um espião do inquisidor, 2006, tradução de Tiago Marques, Bertrand Editora, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-251-609-9.

Cortesia de BertrandE/JDACT