domingo, 20 de setembro de 2015

O Menino do Polegar Verde. Maurice Druon. «Tistu era um menino esquisito, com um nome esquisito. Recusava-se a aceitar ideias pré-fabricadas pelas pessoas grandes, que simplesmente não sabem, por mais que pretendam, de onde viemos, por que estamos aqui e o que devemos fazer nesse mundo».

Cortesia de wikipedia e jdact

«Tistu é um nome esquisito, que a gente não acha em nenhum calendário, nem do nosso país nem dos outros. Não existe um São Tistu.Mas havia, no entanto, um menino a quem todos chamavam Tistu... E é preciso explicá-lo. Um dia, mal acabava de nascer e parecia um menino bonito bercinho de vime, fora levado à igreja para ser baptizado. Um padrinho de chapéu preto e uma madrinha de mangas compridas declararam ao padre que ele se chamava João Baptista. Nesse dia, como quase todos os bebés em idênticas circunstâncias, o coitadinho protestou, gritou, ficou vermelho de chorar. Mas as pessoas grandes, que não compreendem os protestos dos recém-nascidos e teimam em sustentar as suas ideias pré-fabricadas, garantiram com a maior firmeza que o menino se chamava mesmo João Baptista.
Mas em seguida, mal a madrinha de manga comprida e o padrinho de chapéu preto o recolocaram no berço, deu-se um facto curioso: as pessoas grandes já não conseguiam pronunciar o nome que lhe haviam dado, e puseram-se a chamá-lo de Tistu. O facto, aliás, não é tão raro assim. Quantos meninos e meninas foram registados no tabelião ou na igreja com os nomes de José, Maria ou António, e só são chamados de Jucá, Cotinha ou Tônico! Isto prova simplesmente que as ideias pré-fabricadas são ideias mal fabricadas, e que as pessoas grandes não sabem mesmo o nosso nome, como também não sabem, por mais que o pretendam, de onde foi que viemos, por que estamos aqui e o que devemos fazer neste mundo.
Esta observação é muito importante e requer ainda algumas explicações. Se só viemos ao mundo para ser um dia gente grande, logo as ideias pré-fabricadas se alojam facilmente em nossa cabeça, à medida que ela aumenta. Essas ideias, pré-fabricadas há muito tempo, estão todas nos livros. Por isso, se a pessoa se aplica à leitura ou escuta com atenção os que leram muito, consegue ser bem depressa pessoa importante, igual a todas as outras. É bom notar que há ideias pré-fabricadas a respeito de qualquer coisa, o que é bastante prático, permitindo-nos passar facilmente de uma para outra.
Mas, quando a pessoa veio à terra com determinada missão, quando fomos encarregados de executar certa tarefa, as coisas já não são tão fáceis. As ideias pré-fabricadas, que os outros manejam tão bem, recusam-se a ficar na nossa cabeça: entram por um ouvido e saem pelo outro, e vão partir-se no chão. Causamos assim muitas surpresas. Primeiro, aos nossos pais. Depois, a todas as outras pessoas grandes, tão apegadas às suas benditas ideias! E foi justamente o que aconteceu com o garotinho, a quem chamaram Tistu sem consultá-lo.

Os cabelos de Tistu eram louros e crespos na ponta. Como raios de sol que terminassem num pequeno cacho ao tocar na terra. Tistu tinha grandes olhos azuis e faces rosadas e macias. Todas as pessoas o beijavam. Porque as pessoas grandes, sobretudo de nariz grande, rugas na testa e cabelo no ouvido, estão sempre beijando as criancinhas de face macia e rosada. Eles dizem que as crianças gostam, e isto é outra das ideias que inventaram. Porque são eles, os grandes, que gostam, e as crianças de face macia e rosada são muito boazinhas em prestar-se a isso. Todos os que viam Tistu exclamavam: oh!, que garoto bonito! Mas Tistu não ficava vaidoso. A beleza lhe parecia uma coisa inteiramente natural. E até se surpreendia com o facto de todos os homens, todas as mulheres e todas as crianças não serem como seus pais e ele próprio.
Porque os pais de Tistu, é bom dizer logo, eram também muito bonitos. Foi de tanto olhá-los que ele se habituou a pensar que o normal é ser bonito, enquanto o vestir mal de cara, lhe parecia uma excepção e mesmo uma injustiça. O pai de Tistu, que se chamava Sr. Pai, tinha os cabelos negros cuidadosamente fixados com brilhantina; era alto e se vestia com aprumo; não se via grão de poeira na gola do seu casaco, e perfumava-se com água-de-colónia» In Maurice Druon, O Menino do Polegar Verde, 1957, Editora Caravela, 1987, ISBN 978-972-639-004-6.

Cortesia de Caravela/JDACT