segunda-feira, 14 de setembro de 2015

O Cavaleiro Negro. Shannon Drake. «… Não fora apenas rei da Inglaterra; fora um dos maiores reis europeus. Para a Normandia, a Aquitânia, Anjou e Maine, ele mantivera lealdade ao rei da França; mas Henrique fora o governante, sem dúvida»

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O Rei está morto. 1189. Castelo de Chinon
«A chuva diminuíra até se tomar uma chuvinha fina. O manto de Elise já estava encharcado, mas era o melhor que encontrara para a peregrinação dessa noite. O capuz cobria parte do seu rosto e toda a extensão de seus cabelos ruivos e dourados, os quais teriam chamado a atenção de certos homens, naqueles tempos. Aqueles tempos..., os pingos muito finos que caíam contra a sela do cavalo pareciam reverberar em seu coração. O rei morrera. Henrique II, pela graça de Deus, rei da Inglaterra, duque da Normandia e conde d’Anjou, estava morto. E por tudo que ele fora, belo, corajoso, triunfante, ou cruel, idoso, derrotado, Elise o tinha amado com uma devoção singela e cega, que pouquíssimas outras mulheres poderiam ter sentido. Ela o compreendera como poucas; conhecera-o e pensara muito em tudo que poderia fazer por ele. Henrique, neto de outro Henrique, que fora o filho mais novo de Guilherme, o Conquistador, já nascera herdeiro de Anjou e da Normandia. Seu pai lutara para garantir-lhe a Normandia; sua mãe lutara para dar-lhe a Inglaterra. Ela não conseguira e Henrique travara muitas batalhas longas, contra Stephen da Inglaterra para retomar sua herança após a morte deste. Através de Eleanor da Aquitânia, obtivera as vastas terras ao sul da França. Não fora apenas rei da Inglaterra; fora um dos maiores reis europeus.
Para a Normandia, a Aquitânia, Anjou e Maine, ele mantivera lealdade ao rei da França; mas Henrique fora o governante, sem dúvida. Até que o jovem rei francês, Philip Augustus, e os próprios filhos de Henrique, lutando sob a rígida vigilância que mantinha sobre eles, juntaram-se para confrontá-lo. Henrique..., famoso por seu temperamento plantageneta, por sua longa discussão com Thomas Becket e por ter sido a causa do assassinato deste. Um verdadeiro azougue; um homem de energia e força, sempre em movimento, sempre pronto para ir contra qualquer possibilidade. Mas, desta vez, ele perdera. E a morte vencera. Elise cerrou os olhos, numa prece ardente. Como o amara! Pedia a Deus que a história guardasse para as gerações futuras tudo de bom que ele fizera. Mesmo na disputa com Becket, tomara-se algo pessoal. Sim, mas Henrique lutara para dar justiça ao povo. Para tomar o assassinato um crime, fosse ele perpetrado por um clérigo ou um leigo. Henrique fora um homem sempre ao lado da lei! Criara cortes, um sistema judiciário que viveria muito além dele próprio. Suprimira o julgamento por provas, trouxera testemunhas para dentro das cortes. Fora um grande amigo do povo. E agora estava morto. Lutara durante meses contra o jovem rei francês e contra Ricardo, seu próprio herdeiro. Batalha após batalha, tomando cidade após cidade. Ricardo e Philip, por fim, o tinham forçado a assinar um documento com exigências humilhantes, e ele morrera, um tão grande rei que fora, transformado num homem alquebrado.
Elise viera para chorar sua morte porque, para ela, ele fora tudo. Amara-o muito, profundamente. Viajava com apenas uma companhia, Isabel, uma jovem criada a seu serviço. Era muito perigoso que assim fizesse, pois mesmo tendo deixado todas as roupas elegantes para trás, assaltantes e criminosos de toda espécie poderiam cruzar seu caminho em busca de presa fácil. Mas Elise levava consigo a sua adaga e estava entristecida demais para dar crédito ao seu próprio risco. E, conforme seguia pela estrada lamacenta, sob a chuvionha impiedosa, mais deprimida ficava. Eram cinco milhas de seu ducado, num vale fértil e próspero em Montoui, cujas terras estavam sob o domínio de Philip da França, até Chinon, para onde se dirigia. As estradas estavam relativamente boas; eram estradas romanas que se mantinham em bom estado devido à passagem constante de homens da igreja, emissários e peregrinos, além, claro, do movimento frequente de Henrique por seus domínios. Mas boas estradas podiam também significar um perigo maior e Elise passara boa parte da viagem seguindo por caminhos vicinais que estavam em pior estado. Tinha sido uma jornada cansativa e tinham avançado boa parte do caminho cavalgando, mas, agora, a velocidade era menor por causa da chuva.
Uma coruja revoou, saindo de uma árvore próxima, e o seu animal assustou-se. É o castelo, senhora, disse Isabel, com certo nervosismo. Já estamos chegando. A moça estava muito cansada e também assustada. Elise sabia que não deveria tê-la trazido consigo. Isabel era tranquila, não gostava de aventuras. Mas, como a criada era jovem, achou que ela não se cansaria tanto assim. Fosse como fosse, era tarde demais para qualquer mudança agora. Devia ter vindo sozinha, mas seria impossível deixar Montoui sem companhia, pois seus criados jamais permitiriam que fizesse tal jornada. A lua estava pálida no céu nublado, mas as muralhas do castelo já eram visíveis a pouca distância. Chinon era um dos castelos de Henrique, para onde viera depois de seu fatídico encontro com Philip e Ricardo. Era um castelo enorme, com imensas muralhas de pedra, construído para ser uma fortaleza. Havia certa luminosidade vindo de algumas ameias. Mas o tempo ruim impedia que se pudesse ver direito. E, assim, o castelo se tomava uma mancha mais escura no negrume da noite. Venha, Elise chamou sua criada. Estou vendo uma ponte ali adiante. Senhora, tem certeza de que esta aventura pode dar certo? O castelo deve estar cheio de cavaleiros do rei. Sim, Isabel. Esta jornada foi necessária. Elise falava com autoridade. Não estava disposta a aturar críticas de uma serviçal. Mas assim que disse tais palavras, arrependeu-se. Afinal, em sua casa, os criados eram ensinados a ler e escrever; e a pensar e argumentar também». In Shannon Drake, O Cavaleiro Negro, Clássicos históricos, 262, Nova Cultural, São Paulo, 2006.

Cortesia NCultural/JDACT