segunda-feira, 14 de setembro de 2015

De Goa a Lisboa. 1676-1677. Charles Dellon. José Brandão. «… da prisão da Galé e da vida dos forçados, de cuja sorte participava. Apesar de perseguido, preso e condenado pela Inquisição (maldita) a uma pena infamante, não deixou Portugal a dizer mal da terra e das gentes»

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«Charles Dellon veio a Portugal muito contra a sua vontade e na pior das condições possíveis; desembarcou em Lisboa, no dia 16 de Dezembro de 1676, carregado de ferros, com destino à Galé onde fora condenado pela Inquisição (maldita) de Goa a cumprir a pena de cinco anos de trabalhos forçados. No auto-de-fé realizado em Goa, no dia 12 de Janeiro desse mesmo ano, figurara como herético.
(...)
Até à altura a que se reporta a sua narrativa na Relation, Dellon conhece as prisões de Damão, Baçaim e Goa. Assim as descreve: a prisão de Damão fica a nível inferior ao do rio próximo, o que a torna húmida e malsã (...) as paredes são espessas e ocupa duas grandes salas, uma subterrânea e outra no piso superior: os homens estão na de baixo e as mulheres na de cima. A maior tem 40 pés de comprimento e 15 de largura e a outra tem dois terços destas dimensões. Nesse espaço encontrávamo-nos cerca de 40 homens e não havia qualquer local para satisfazer as necessidades ordinárias, pelo que o compartimento tinha de ser baldeado; as águas, acumulando-se, formavam uma espécie de charco. As mulheres, no seu andar, não tinham melhores cómodos, a não ser a vantagem de as águas se escoarem pelas fisgas das tábuas do sobrado para a nossa prisão onde todas as águas ficavam estagnadas Da prisão de Baçaim diz: é maior e menos suja que a de Damão. A prisão de Goa é por ele classificada como a mais suja, a mais obscura e a mais horrenda de todas as que havia conhecido e não crê que possa haver outra mais fedorenta e mais repugnante: é uma espécie de cave onde só por uma pequena fresta penetra a luz do dia, mas onde não passa o mais fraco raio de sol. O fedor é extremo, porque não há outro lugar para satisfazer as necessidades dos prisioneiros senão um poço aberto no chão, a meio da casa, onde não é possível aproximar-se alguém por causa dos dejetos que o circundam. ... O autor narra a sua partida de Goa estada em S. Salvador, no Brasil, desembarque em Lisboa e os seis meses que aqui permaneceu, preso na Galé. O que conheceu e descreveu de Lisboa foi pouco e pode bem dizer-se que nunca se afastou do que então era o centro da cidade. No entanto, se foi pouco o que viu, o que deixou relatado tem valor documental, principalmente a descrição da prisão da Galé e da vida dos forçados, de cuja sorte participava. Apesar de perseguido, preso e condenado pela Inquisição (maldita) a uma pena infamante, não deixou Portugal a dizer mal da terra e das gentes. In Branco Chaves

Partida de Goa. Chegada ao Brasil
Fui conduzido, com grilhetas nos pés, à nau que se encontrava na enseada pronta a partir para Portugal; confiaram-me ao mestre da tripulação que ficou encarregado de me entregar à Inquisição (maldita) de Lisboa. [,ogo que o capitão recebeu os últimos despachos, levantou âncora, em 27 de Janeiro de 1676, e nesse mesmo dia tiraram-me a grilheta. A viagem foi feliz até ao Brasil, onde chegámos no mês de Março. Logo que se fundeou na Baía de Todos os Santos, o mestre, a cuja responsabilidade eu vinha entregue, levou-me para terra, conduziu-me ao palácio do governador e daí à prisão pública, onde me entregou ao carcereiro. Permaneci nesta prisão todo o tempo que a nau demorou no porto, mas por mercê de alguns amigos que eu tinha feito neste país, gozei durante o tempo que ali estive da liberdade de poder sair durante o dia e só de noite ficar encarcerado.
Em todo o Brasil o clima é temperado e aprazível, os ares são puros, a terra fértil e por toda a costa são frequentes os bons ancoradouros onde os navios podem ficar em segurança. Os naturais do Brasil não são negros, mas também não são completamente brancos, tendendo principalmente para o vermelho. São bem-feitos de corpo, usam os cabelos compridos e, embora não tenham o rosto disforme, têm uma expressão de ferocidade, que se não pode bem definir, mas que os assemelha muito à dos tártaros setentrionais. São muito aguerridos, o que os torna cruéis para os prisioneiros que fazem, os quais matam e comem.
Em muitos sítios do Brasil, os homens e as mulheres andam nus, mas desde que os Portugueses tomaram posse do país, aqueles que com eles têm convivido, têm, pouco a pouco, tomado o hábito de se vestirem, perderam o costume de comer carne humana, havendo muitos que se fizeram cristãos. Os portugueses têm acasalado com mulheres do Brasil, pelo que acontece haver hoje ali mais mestiços que portugueses puros. Como todo o Brasil é frequentemente regado por chuvas, as pastagens são muito boas e facultam facilmente a alimentação de grande quantidade de gado, e acresce também que nenhuma parte do mundo é banhada por tão excelentes rios como a América. No Brasil facilmente o homem se apercebe desta liberalidade da natureza; a abundância de água não só fertiliza as terras, como também a abundância de peixes que há no mar favorece a alimentação das populações vizinhas das costas». In José Brandão, Este é o Reino de Portugal, Saída de Emergência,2013, ISBN 978-989-637-457-0

Cortesia de SEmergência/JDACT