sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Cratino. A Sombra de um Grande Poeta. Maria de Fátima Silva. «… definidas as duas linhas mestras do perfil artístico de Cratino, em harmoniosa concertação: é pelo vigor do ataque nominal, a que se soma a consciência progressivamente mais lúcida da definição da natureza e exigências da arte…»

Cortesia de wikipedia

«(…) A imagem estabelece desde logo a proporção entre os dois intervenientes, o vigor do poeta e a qualidade majestosa das vítimas, que fizeram da invectiva um terreno de lutas sem quartel; delas podia a assistência colher uma mensagem instrutiva, fundada na experiência quotidiana da comunidade ateniense. A aspereza característica dos ataques de Cratino é mais tarde confirmada por Platónio, que a considera uma herança de Arquíloco: Cratino (...), como é normal em imitadores de Arquíloco, é um poeta áspero nos ataques que dirige.
Ε logo o mesmo comentador estabelece um curioso paralelo com Aristófanes, que, também ele entusiasta da invectiva pessoal, conseguiu no entanto conferir-lhe elegância e finura, que a purificaram de uma vulgaridade a que Cratino não soube escapar: Não faz, como Aristófanes, sobressair a graça nas suas piadas. Acrescentemos a informação de alguém, que, ao reflectir sobre o passado da comédia, acrescenta à imagem de Cratino outros méritos: o empenho na definição estrutural do género, mesmo que com um sucesso parcial, a ser mais tarde aperfeiçoado por Aristófanes, bem como o estabelecimento de um objectivo agora mais nítido: Cratino elevou α três as personagens da comédia, assim consolidando uma estrutura ainda inconsistente, e à graça adicionou a utilidade, pelo ataque contra os malvados, servindo-se da comédia como de uma espécie de chicote público.
Dos dois testemunhos ressalta a noção de uma linha de continuidade a unir Cratino e Aristófanes: ambos empenhados em finalidades idênticas, de valorização artística e justificação de um objectivo para a arte cómica, distingue-os apenas a meta atingida, Cratino detentor do mérito de quem rasga com ousadia um caminho novo, e Aristófanes de quem prossegue e leva ao sucesso pleno o projecto de que é herdeiro. Deixemos, por fim, falar o próprio Cratino que, em palavras breves, nos deixa repetidos manifestos de uma consciência já clara das dificuldades da arte e do desafio que se coloca ao comediógrafo, perante um público de humor oscilante e imprevisível nas suas reacções. Mais do que à defesa da qualidade estética ou do espírito criativo, Cratino está atento à missão didáctica da comédia, como factor primordial na avaliação do génio de um poeta. Ora é um coro que afirma o prazer que tem em vir, de livre vontade, para o convívio de um público requintado; logo a confissão de um arrojo que lhe dita todas as ousadias: Não há nada que este coro não leve por diante, nada a que se não atreva.
Depois o orgulho pela obra produzida, que o ergue sobre altaneiro pedestal, inacessível a rivais mais modestos: Esta comédia (Quírones) representa para mim dois anos de trabalho intenso, a que acrescentava, segundo Aristides: Α outros poetas não basta toda uma vida para obterem uma reles imitação.
Por fim, o reconhecimento de que, mais do que a qualidade da forma, é o poder da mensagem que impõe o verdadeiro génio. Numa peça sugestivamente intitulada Dionisos, Cratino suspirava: Que vença aquele que melhor falar à cidade! E, em anos próximos, nos Quírones, repetia, agora numa referência inequívoca à comédia: Eis α razão por que nós, os Quírones, aqui estamos: para vos darmos os nossos conselhos. Por vezes, mesmo que sem palavras a aboná-lo, um simples título pode comportar a evidência de um conteúdo; Representações teatrais é o exemplo claro de uma promessa de tratamento alargado de questões ligadas à produção teatral. Ou a notícia indirecta, colhida no argumento de alguma peça perdida, da utilização do coro como transmissor do sentir do poeta sobre a arte que cultiva. Estão, assim, definidas as duas linhas mestras do perfil artístico de Cratino, em harmoniosa concertação: é pelo vigor do ataque nominal, a que se soma a consciência progressivamente mais lúcida da definição da natureza e exigências da arte, que o velho poeta orienta a comédia num caminho ascendente». In Maria de Fátima Silva, Cratino, A Sombra de um Grande Poeta, Revista Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT