terça-feira, 15 de setembro de 2015

As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961. Edila Gaitonde. «Aqui, em Kalyan, o governo tinha construído um grande número de barracas pré- fabricadas, muito compridas, para cada uma delas poder alojar várias famílias»

Cunhados 
jdact

«(…) Em casa, todos foram de opinião que devia pôr as minhas roupas europeias de lado. Shalini, toda desembaraçada, foi imediatamente buscar um magnífico sari de seda branca, estampado com enormes flores cor-de-rosa. As blusas dela serviam-me perfeitamente e pude escolher com facilidade uma da mesma cor das flores. Nunca tinha usado um sari, mas senti-me razoavelmente confortável e fiquei logo pronta para sair. No entanto, por precaução, seguraram-me as pregas com um grande alfinete de segurança, não me fosse suceder algum imprevisto. Pouco depois saí com Bhauji no seu novo Oldsmobile, guiado pelo motorista. O cenário era espectacular. O mar cortava a costa já dentada, formando aqui e ali pequenas enseadas. Por vezes abria caminho terra adentro, como pequenos fiordes, formando extensos backwaters que reflectiam os altos montes rochosos que se elevavam entre a planície e a costa. Esta paisagem dramática poderia ser um verdadeiro paraíso para os pintores se não fosse a colossal tragédia humana que acolhia. O meu primeiro passeio turístico na Índia acabara por ser uma visita ao maior campo de refugiados em todo o estado de Maharashtra.
Havia passado um ano depois da divisão da Índia, que tanta miséria e infortúnio trouxera ao povo. Depois da independência da Grã-Bretanha, o país fora dividido para formar dois países independentes. O Paquistão ficou para os muçulmanos e a Índia para todos os outros. Milhares de pessoas viram famílias e amigos separados por uma barreira artificial que daria início a um grande êxodo dos dois lados. A maior parte dos refugiados preferia vir para a Índia, visto ter sido sempre um país secular, aceitando a igualdade de religiões. Em pouco tempo milhares de famílias começaram a passar a fronteira para a Índia. E a corrente continuava. Fugiam a pé, de automóvel ou até em carro de bois, apinhados com tudo o que pudessem acarretar.
Aqui, em Kalyan, o governo tinha construído um grande número de barracas pré- fabricadas, muito compridas, para cada uma delas poder alojar várias famílias. Actualmente, após tão intensa tempestade, poucos eram os tectos intactos e o campo estava num caos; muitos dos escassos valores pessoais que estas infelizes famílias tinham trazido estavam agora perdidos. Cada família procurava ficar reunida à volta do seu fogareiro. Centenas delas cozinhavam assim ao ar livre ou em qualquer canto de uma tosca barraca. Escombros e lixo viam-se por toda a parte, enquanto a miudagem, de caras sujas e roupas enxovalhadas, corria pelo campo e brincava nas poças de lama ali à roda.
O sol ia já alto e o calor apertava quando chegámos a Kalyan. O tempo estava muito abafado. Bhauji saiu do carro e foi a pé fazer a inspecção deste enorme acampamento com os outros engenheiros da localidade. Eu fiquei ali sentada à espera enquanto ia observando tudo o que me rodeava. Inesperadamente, alguém chegou ao carro, onde me mantinha sentada, trazendo-me uma chávena de chá. Aceitei de bom grado e agradeci o chá, que fumegava e cheirava a cardamomo. À minha volta surgiu logo um grupo de miúdos de caras sujas que me olhavam curiosos. Talvez por verem ali uma europeia vestida de sari! Senti-me exposta, desconfortável e com uma grande tristeza pela imensa miséria que me rodeava. A Índia dos meus sonhos, de palácios e templos, de cores vivas e beleza natural, transformara-se rapidamente numa cidade destroçada e na sordidez opressiva de um campo de refugiados destruído pelo ciclone. Senti uma dor profunda no coração. Lembrei-me com saudade da minha terra, das verdes pastagens cortadas por altas sebes de hortênsias azuis, do mar azuis, transparente, e das criptomérias, que oscilam com a brisa suave. Todo aquele mundo distante, perdido agora para mim, passou levemente pelo meu pensamento». In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.

Em memória de Ofélia e Álvaro José.

Cortesia de ETágide/JDACT