domingo, 27 de setembro de 2015

A Traição de D. Manuel I. Jorge S. Correia. «Por pouco tempo dona Leonor teve o exclusivo filial. Qual relógio afinado, sua mãe foi preenchendo os berços que havia nos palácios por onde dividia, com Filipe, os fluidos amorosos, uma produção tal…»

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Com uns pais assim, dona Leonor de Áustria saiu muito boa
«No dia 24 de Novembro de 1498, um sábado, o palácio de Coudenberg, em Bruxelas, encheu-se de cortesãos para saudar Filipe, o Belo, e dona Joana, a Louca, arquiduques de Áustria, duques da Flandres e de Brabante. Ele, filho do imperador do Sacro Império Romano-Germânico, ela, filha dos reis de Castela, dona Isabel, a Católica e Fernando de Aragão, também irmã de dona Isabel e dona Maria, respectivamente, a primeira e a segunda mulher de Manuel I. A primeira filha do casal recebeu o nome de dona Leonor em homenagem à princesa portuguesa do mesmo nome, filha de Duarte I, avó do pai da criancinha. Dona Leonor de Áustria ou de Habsburgo, como também seria conhecida por o seu lado paterno senhorear a Casa de Habsburgo, teve quem lhe ensinasse tudo o que precisava, ser submissa também, mas isso pouco importava porque a sua tarefa primeira era casar com príncipe ou rei e ser mãe. Rodopiando entre salões e jardins, tudo de grande aprazimento e ostentação, passaria a maior parte da infância e juventude em Malines, junto dos irmãos Carlos, Isabel e Maria, sob a tutela da tia Margarida, irmã do pai e regente dos Países-Baixos depois de enviuvar de Felisberto II, duque de Sabóia.
As viagens de dona Leonor tiveram rumos bem diversos daqueles que os humanistas traçaram para levar as palavras que mudariam as mentalidades desse tempo. A princesa tinha o porvir traçado, não podia fugir dele, um destino que a conduzirá por vários reinos europeus, perseguindo uma felicidade que teimou em fugir-lhe: foi princesa na Flandres natal até aos dezassete anos, infanta de Espanha por pouco tempo, rainha de Portugal sem sequer chegar a aprender a língua portuguesa; rainha de França sem dormir com o rei; outra vez, a Flandres, quando o seu esplendor entristeceu, e, por fim, o regresso às origens maternas, a Espanha, onde, num último esforço, procurou aproximar-se do bem mais precioso que deixara em Portugal, a sua filha dona Maria de Portugal.
Como todas as almas dedicadas a Deus, dona Leonor de Áustria não interferirá no seu destino. A princesa, embora filha de mãe castelhana, tivera as suas raízes culturais no ambiente que a rodeou, nas pessoas que a acompanharam, educaram ou divertiram, de modo a fazer crescer a dama excepcional que foi. Dizem que estudou Ciências, História, Gramática, Música, não terá estudado Oratória, isso era coisa de homens, exercício usado nos debates sobre a política ou a guerra. Sem dúvida que exibia modos e maneiras de grande sensibilidade e bom gosto, falaria francês e flamengo, línguas em que a tia Margarida e os irmãos Carlos, Isabel e Maria se expressavam também, bem melhor do que no castelhano falado pela mãe e por outros dois irmãos, Fernando e Catarina, jovens que, ao contrário dos manos do Norte, só saíram de Espanha para assumir compromissos que o irmão mais velho, Carlos, lhes proporcionaria: o primeiro, já adulto, para tomar conta do Sacro Império Romano-Germânico, a segunda, aos dezoito anos, para casar em Portugal. Quando a adolescência começou a provocar o pensamento jovem da princesa e a beleza anseios masculinos, o poeta Olivier de la Marche dedicou-lhe um poema com trezentos e cinquenta versos, um exagero difícil de reproduzir, mas revelador do que dona Leonor representava na corte:

Sou ordenado para ser governado
por uma filha de Rei e de imperador.
É a Senhora Aliénore da Áustria.
Sou dela, e não vou ser mesquinho
semear fruto louvado e virtudes
Diante da Dama que eu amo mais!

Por pouco tempo dona Leonor teve o exclusivo filial. Qual relógio afinado, sua mãe foi preenchendo os berços que havia nos palácios por onde dividia, com Filipe, os fluidos amorosos, uma produção tal que contribuiu com numerosas hipóteses de casamento para os vários reinos de então: em 1498, nasceu dona Leonor; Carlos, em 1500; no ano seguinte, nasceria dona Isabel; Fernando, em 1503; dona Maria, em 1505; e, por último, já sem marido, mas com a encomenda no ventre, dona Joana deu à luz uma menina, em 1507, a princesa Catarina, com a qual viveu até esta se casar.
A exuberante fertilidade de Joana e Filipe expressaria paixão, amor, manifestações de felicidade’ Não era preciso! Os grandes senhores juntavam os seus filhos para fazer crescer os espólios, fossem eles cabeças coroadas, nobres e mesmo a burguesia florescente, sendo que os filhos, muitos ou poucos, seriam o prolongamento das suas Casas. Então porque tinham tantos filhos?» In Jorge Sousa Correia, A Traição de D Manuel I, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-262-5.

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