segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Uma pequena vila no 31. Galveias. José Luís Peixoto. «O ar estava coberto por um sólido cheiro a enxofre. Era como se a própria noite tivesse essa consistência, como se fosse aquele cheiro agreste a dar-lhe cor. Debaixo desse veneno, os galveenses não puderam encher os pulmões…»

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«Escuta lá, de quem é que tu és filho? Sou o filho do Peixoto da serração e da Alzira Pulguinhas»

Janeiro de 1984
«(…) Sem que o soubessem, guardavam sintonia com um ritmo maior do que as paredes à sua volta. Logo quando começaram, em cadência incerta, ou depois quando continuaram a uma velocidade mecânica, tipo comboio, ou mesmo quando se dirigiram para o fim com estocadas rápidas, as duas cinturas a baterem palmas côncavas, toc, toc, toc, dirigiam-se já para aquele ponto no tempo. Em sincronização perfeita, o Sem Medo e a mulher receberam uma onda de prazer e de glória, que os varreu durante um minuto inteiro e que coincidiu, segundo após segundo, com a explosão que se sentiu em Galveias. Por isso, ao contrário de todos, quando o Sem Medo saiu de cima da mulher, estavam os dois arrasados de profunda satisfação.
Muitos acharam que era o fim do mundo, principalmente o padre Daniel, que acordou ainda baralhado da bebedeira, com a cara espalmada de encontro à mesa da cozinha. Com a face crivada de migalhas de pão duro. Como uma buzina feita de morte, a explosão cobriu os gritos por completo. A maioria dos galveenses desconhecia um barulho tão bruto, não sabia que era possível. Alguns, por instinto, passaram esse minuto a gritar. Sem possibilidade de raciocínio, sentiram que se ouvissem a sua voz estariam a controlar a situação. Ao mesmo tempo, seria sinal de que estavam vivos. Mas, com a garganta em esforço, não chegavam a escutar-se sequer dentro da cabeça. Abriam a boca, gritavam e, apesar de sentirem a vibração da voz, o sangue a palpitar nas têmporas, os olhos quase a rebentarem, não ouviam nada. Quando o barulho terminou, ficou um silêncio insistente, um guincho nos ouvidos. Então, podiam ter gritado, mas aquele já não era tempo de gritos, era hora de respirar. Por isso, todos foram para a rua, velhos, crianças, mulheres, homens com a barba por fazer.
O ar estava coberto por um sólido cheiro a enxofre. Era como se a própria noite tivesse essa consistência, como se fosse aquele cheiro agreste a dar-lhe cor. Debaixo desse veneno, os galveenses não puderam encher os pulmões mas, em roupa de cama ou roupa de casa, malvestidos, apreciaram o frio, soube-lhes bem na pele. Tinham sobrevivido. A meio da noite, as portas abertas de todas as casas da vila, luz entornada, e as ruas cheias, mulheres de camisa de noite, homens de ceroulas, contentes por se verem uns aos outros. Estavam alarmados e magoados mas, assim que dividiram o peso dessa aflição por todos, o alívio foi imediato. Houve quem começasse a sorrir logo ali. Ninguém tinha respostas. Do Queimado à Amendoeira, no Alto da Praça, na Deveza, na Fonte, as ruas estavam cheias de gente a expulsar de dentro de si o susto. Sob o trauma dos estrondos e o cheiro a enxofre, falavam sem parar. Perdiam o sentido, mas não perdiam a oportunidade. Àquela hora, bem passava da meia-noite, em Janeiro, as ruas estavam cheias de gente a falar. Todos queriam dizer alguma coisa. Quando parecia que estavam compenetrados, não estavam realmente a ouvir, estavam só à espera de vez, à espera de um bocadinho vago para entrarem com o que tinham a dizer. Até as crianças, ignoradas pelos crescidos, procuravam-se e arregalavam os olhos. Dentro do segredo, entre as sombras, os cães cheiravam-se uns aos outros, murchos, magoados, de orelhas descaídas, como se tentassem consolar-se de uma tristeza infinita.
Na fachada do Matta Figueira, na rua da Fonte Velha, o candeeiro estava tombado, de pescoço partido, cabeça caída, sem préstimo. Era um candeeiro de estimação, pendia daquela parede desde épocas em que o pavio era aceso todas as noites. E, sim, o próprio Matta Figueira estava na rua, dois passos diante da sua porta, e estava também a senhora, e também o filho, menino Pedro, também a nora e o neto. Como se posassem para uma fotografia. Apesar de terem acordado de imprevisto como toda a gente, estavam bem penteados e passados a ferro. Essa solenidade contagiava os vizinhos. Até o Acúrcio e a mulher, do outro lado da rua, vestidos com a roupa com que atendiam todos os dias na taberna, nódoas de vinho tinto, estavam em sentido, mas sem convicção. O cabo da guarda, vindo do lado do terreiro, foi direito ao Matta Figueira. Em tom de relatório, não tinha explicações seguras. De olhar baixo, lamentava muito, pedia desculpas, quase como se assumisse responsabilidade da ocorrência. O doutor não o desculpou logo. Não podia esquecer com tanta facilidade um incómodo daquela dimensão. A sua família, como era visível, tinha sido bastante atingida. Além disso, havia a situação do candeeiro. O cheiro a enxofre engelhava a cara das pessoas em toda a vila». In José Luís Peixoto, Galveias, Quetzal Editores, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-722-179-8.

Cortesia de Quetzal/JDACT