sábado, 29 de agosto de 2015

Mountolive. O Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «Bateu palmas violentamente e soltou um grito através das águas, sobressaltando o companheiro, que levantou a cabeça para seguir-lhe a direcção do dedo apontado. Para onde?»

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«(…) Os dois apêndices de carne rosada que separavam o lábio fendido estavam húmidos de saliva. Piscou o olho afectuosamente ao jovem inglês. As trevas corriam agora para eles e a luz extinguia-se. Bruscamente Narouz gritou: Chegou o momento. Olhe lá para diante. Bateu palmas violentamente e soltou um grito através das águas, sobressaltando o companheiro, que levantou a cabeça para seguir-lhe a direcção do dedo apontado. Para onde? A resposta de um tiro disparado no barco mais distante chicoteou o espaço, e a linha do horizonte foi novamente cortada a meio por um novo voo, erguendo-se mais lentamente e dividindo céu e terra numa ferida encarnada que alastrava como o recheio de uma romã a derramar-se da casca. Depois, o encarnado cambiou para escarlate, e a abóbada recaiu na superfície do lago numa chuva de neve branca que se fundia ao tocar na água. Flamingos!, exclamaram ambos e riram, e a escuridão recaiu sobre eles, extinguindo o mundo visível.
Ficaram por um momento imóveis, respirando pesadamente, enquanto os seus olhos se acostumavam às trevas. Vozes e gargalhadas de barcos distantes, flutuando na trilha que seguiam. Alguém gritou Ya, Narouz, repetindo Ya, Narouz. O rapaz limitou-se a resmungar. E veio então o som breve e sincopado de um tamborim, música cujos ritmos se instalaram na mente de Mountolive de tal modo que este se surpreendeu a tamborilar com os dedos no costado da embarcação. O lago era agora invisível, a lama amarelada tinha desaparecido, essa lama quebrada e macia das grandes fendas pré-históricas, ou essa lama betuminosa que o Nilo leva adiante na sua marcha para o mar. O seu relento impregnava a atmosfera. Ya, Narouz, ouviu-se uma vez mais, e Mountolive reconheceu a voz de Nessin, o irmão mais velho, trazida numa rajada de vento. Está..., na..., hora..., de..., acender. Narouz resmungou uma resposta e soltou um grunhido de prazer procurando os fósforos. Agora é que vai ver, disse com orgulho.
O círculo das canoas tinha-se cerrado em torno das redes e no crepúsculo quente principiaram a flamejar as chamazinhas dos fósforos; logo as lâmpadas de carbureto fixadas à proa das embarcações começaram a emitir a sua luz trémula e amarelada, vacilando antes de se acender, permitindo assim aos que não se encontravam alinhados rectificarem as posições. Narouz passou por cima do companheiro, desculpando-se, e dirigiu-se à proa. Mountolive surpreendeu o cheiro a suor do seu corpo atlético quando o outro se debruçou para aspirar o tubo de borracha e agitar o reservatório da lâmpada, cheio de pedaços de carbureto. Depois deu volta a uma chave, acendeu um fósforo e por um momento ficaram ambos sufocados pela densa fumarada que se dissipou rapidamente enquanto debaixo deles florescia, como um imenso cristal colorido, um semicírculo de água, radiante como uma lanterna mágica, revelando as formas estranhamente nítidas dos peixes que se dispersavam e tornavam a agrupar com estremecimentos de surpresa, de curiosidade e, porventura, até de prazer. Narouz expeliu o ar dos pulmões e regressou à popa.
Olhe para baixo, disse num tom imperativo; e acrescentou: mas conserve a cabeça bastante baixa. E como Mountolive, que não compreendera esta última recomendação, se voltasse para o interrogar, explicou: cubra a cabeça com o casaco. Os maçaricos enlouquecem com a pescaria. Da última vez fiquei com um rasgão na face e Sobhi perdeu um olho. Olhe baixo e para a água. Mountolive obedeceu e ficou ali flutuando no poço de luz inquieta, cuja superfície era agora de um cristal incomparável onde passeavam tartarugas, sapos e peixes, um mundo perturbado pela invasão dos seus domínios. o batel oscilou novamente antes de deslizar para diante. A água fria lambia-lhe os pés. Com um canto do olho viu o semicírculo luminoso, como uma corrente florida, fechar-se mais rapidamente; e, como para dar às embarcações um ritmo e uma orientação, elevou-se um cântico, acompanhado pelos tamborins, surdo e melancólico, mas imperativo. Outra vez os sacões do batel se foram repercutir nas suas costas. As sensações presentes eram inteiramente novas, não tinham precedente.
A água adensara-se, espessa como um caldo de aveia lentamente remexido ao fogo. Mas, atentando melhor, compreendeu que essa densidade não era devida à água mas à proliferação dos peixes, que, excitados sem dúvida pela consciência do seu grande número, deslizavam e saltitavam. O cordão fechara-se como um nó corredio, e agora as embarcações não distavam entre si mais de sete metros. Os homens lançavam gritos roucos e batiam a água, excitados também eles pela presença dos cardumes cada vez mais densos no fundo macio do lago, enquanto os peixes se enervavam num ritmo crescente ao descobrirem-se cercados. Era um delírio de movimentos circulares e fugas bruscas. Vagas silhuetas de homens começaram a desdobrar as redes e a gritaria aumentou. Mountolive sentiu que o sangue lhe corria mais vivo». In Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria, Mountolive, 1958, Publicações dom Quixote, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia PdQuixote/JDACT