domingo, 30 de agosto de 2015

De Princesa a Rainha-velha. Leonor de Lencastre. Isabel Guimarães Sá. «… um reino empobrecido, um património real secundário face à soma do dos dois ducados de Bragança e Viseu. Para João II, arriscamos, a família “rica”, seria a da mulher e não a dele. E a mãe, dona Beatriz? E os irmãos de Leonor?»

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Um pai ambicioso. O infante Fernando, irmão do rei Afonso V
«(…) O autor ou autores dos Apontamentos históricos, dão no entanto um timing diferente para este acordo: verificou-se logo a seguir à expedição em que o infante Fernando conquistou Anafé com autorização do irmão, em 1468. Reza o texto: … neste tempo depois da vinda do infante Fernando acabou ele de firmarde tudo com el rei seu irmão o casamento da senhora dona Leonor sua filha com o príncipe João; e assim consertou outro da senhora dona Isabel também sua filha legítima com o conde de Guimarães e el rei por mais enobrecimento deste casamento o fez duque da mesma vila de Guimarães sendo ainda vivo o duque de Bragança seu pai por cuja morte sucedeu o título de dois ducados e etc. Aos 10 anos, estava já a nossa rainha prometida ao herdeiro do trono, e sua irmã ao futuro duque de Bragança. Filhas arrumadas, portanto. Com uma importante consequência, que devemos desde já assinalar. Vistas as coisas pelo lado do futuro João II, agora comprometido, estavam cortadas as hipóteses de fazer outros arranjos matrimoniais. Com efeito, poucos anos antes, em 1465, a irmã de ambos, Joana, casada com o rei de Castela Henrique IV, viera pedir ajuda contra os nobres que se levantavam contra o marido, tendo falado do casamento tanto do rei viúvo como do seu herdeiro. Os casamentos não foram por diante, mas as noivas em perspectiva eram a sua filha muito pequena, Joana, e Isabel, meia-irmã do rei, e depois conhecida por a Católica. Estes planos deviam ser do conhecimento do próprio duque de Viseu, que assim punha termo a quaisquer projectos, interpondo a sua filha entre Afonso V e a família real castelhana, O que terá consequências futuras.
Os sucessores do infante Fernando, nomeadamente a sua viúva, tratariam dos detalhes do negócio com o seu irmão Afonso V. A outra filha, Isabel, nascida depois de dona Leonor, viria a casar pela mesma altura. Uma sequência que, de resto, não tinha nada de aleatório: nos jogos das uniões dinásticas, a filha mais velha, a não ser que tivesse algum defeito, era sempre dada ao noivo mais importante. E é quase tudo o que se pode dizer acerca do pai e da filha, e apenas podemos especular sobre as recordações que esta última teve do pai na sua idade adulta. Recordá-lo-ia ao lado da mãe, em Beja, preparando a criação do Mosteiro da Conceição? Ou como cavaleiro, aprontando expedições a África? Ou como governador das ordens militares de Santiago e de Cristo? Ou, pelo contrário, tinha dele uma imagem ficcionada, alterada pelas recordações e narrativas dos outros? Em todo o caso, relembre-se que, à semelhança de muitas crianças não só das famílias reais como das outras, dona Leonor ficou sem pai muito cedo, e não deixou de ser, embora rica e bem nascida, uma órfã. Numa época em que a esperança de vida era curta e a mortalidade elevada, ficar sem pais durante a infância era um destino relativamente comum.
Relembre-se que esse estatuto era dado a todas as crianças cujo pai, natural detentor do poder paternal, tinha morrido ou não existia, o que fazia com que os que tivessem o pai vivo mas não a mãe não fossem considerados órfãos. Por exemplo, o príncipe João (futuro João II), embora sem mãe desde os sete meses, não era um órfão à face da lei. Dona Leonor foi-o, mas uma órfã para quem o pai teve tempo de cumprir o seu dever antes de morrer: arranjar-lhe um casamento vantajoso. Mesmo sem sabermos o que a figura paterna representou para a filha, adivinhamos o que o tio Fernando pode ter significado para João II: um reino empobrecido, um património real secundário face à soma do dos dois ducados de Bragança e Viseu. Para João II, arriscamos, a família rica, seria a da mulher e não a dele. E a mãe, dona Beatriz? E os irmãos de Leonor?

Uma mãe eficiente: dona Beatriz, infanta e neta do duque de Bragança
 mãe, tinha também reis entre os seus antepassados, sendo neta pela via paterna e materna do fundador da dinastia, o da Boa Memória, João I (1357-1385-1433). Como dissemos, era filha de um dos seus filhos legítimos, infante João, que tinha por sua vez casado com a meia-prima dona Isabel, filha de Afonso, 1.º duque de Bragança, bastardo de João I, e portanto também sua neta por via ilegítima. Casou com o infante Fernando em 1447, mas o seu contrato foi assinado dois anos antes. O seu enxoval é conhecido e encontra-se publicado: … jóias e corregimentos, que recebeu de sua mãe, dona Isabel de Bragança. Às mães competia zelar para que as filhas levassem para o casamento todos os objectos necessários ao corpo e casa. O enxoval de dona Beatriz é elucidativo sob vários pontos de vista, e necessita de um estudo que o enquadre na história da cultura material tardo-medieval, comparando-o com o de outras noivas de estirpe régia». In Isabel Guimarães Sá, De Princesa a Rainha-velha, Leonor de Lencastre, colecção Rainhas de Portugal, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-424-709-0.

Cortesia de CLeitores/JDACT