quarta-feira, 12 de agosto de 2015

De Lúcia a Violeta. Maria Callas. Rita Cerdeiros. «Aflige-me a lonjura das estepes, o afastamento progressivo das pessoas que me estavam próximas, a desertificação das coisas que me acontecem, as salas dos teatros para mim dantes abertas, o declínio de uma voz que hoje me escapa e em que me revia intacta»

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Paris, princípios de Agosto de 1977
«(…) São duas da manhã e a inquietação teima em persistir nas minhas vísceras entupindo-me as veias e a cabeça, são duas da manhã e arrasto-me, são duas da manhã e o vazio é imenso dentro de mim e à minha volta, é um vazio feito de perdas e de ausências, de coisas que não tenho e que me fazem falta. São duas da manhã de uma noite de Agosto serena e envolvente, e que me deixa perplexa, porque, e em princípio, me deveria sentir contente e repleta, sou a Callas, digo em voz alta, e isso me deveria bastar, sou a Callas, repito sem cessar para mim mesma, sabendo que esta afirmação não é porém completamente exacta, porque, se eu ainda fosse a Callas, estaria a cantar num palco uma ópera, a minha voz seria capaz de tomar corpo e forma veiculando os sons que estão na minha garganta, e na minha cabeça, a minha voz adquiriria, como antigamente, consistências ora espessas, ora rarefeitas, atravessaria a música com as suas vibrações e as suas ressonâncias, seguiria adiante atravessando as salas na esteira da música, chegaria às pessoas que a ela reagem e dela se alimentam. Quero desesperadamente agarrá-la porque me habituei a vê-la como a parte de mim que de facto importa, mas a verdade é que me falta, perdi-a a cada dia sem me dar conta. Eu era a minha voz e a pouco e pouco vi-me dela despojada e fiquei morta. Porque, se eu era a minha voz, como continuar viva sem ela, como continuar a sentir-me intacta? Porque os anos passam e eu sinto que se trata de uma perda irrevogável, nada já me poderá trazer de volta a sua precisão e as suas proezas mirabolantes e acrobáticas, hoje a minha voz, tal como era, não passa de uma lembrança que as mais das vezes me escapa, e então ouço as minhas gravações e trago-a de volta, materializo-a junto de mim, ouço-a vezes sem conta, e sei que fui eu que lhe dei forma e matéria, e isso me tranquiliza e me serena, para logo a seguir me deixar presa da maior angústia, a consciência aguda de que nunca mais serei ela, que nela tudo me escapa, que tenho inveja dela, que a olho como se de mim estivesse fora, e fizesse parte de outra pessoa, que não eu própria.
É Agosto em Paris e eu estou exausta, eu que lutei sempre com todas as minhas forças. É Agosto em Paris e eu quereria esquecer que a voz que era a minha se gastou com o tempo, e perante a minha impotência. Bruna e Ferruccio dormem. Eu mantenho-me numa vigília forçada e inútil, há uma inquietação dentro de mim que me consome as entranhas e me mantém desperta, é como se a dor que sinto não permitisse que o sono me trouxesse o esquecimento das coisas que me acontecem. Tenho permanentemente diante dos meus olhos o que fui e já não sou, e o nada que me resta. Bruna e Ferruccio são-me devotados e amparam-me, mas às outras pessoas receio-as e evito-as. Como vou eu apresentar-me perante elas? Não tenho ilusões. Procuram em mim a Callas que fui e não a pessoa que eu sou agora. Prestam homenagem ao que represento. E acabo por chegar à conclusão que é como se eu fosse, em vida, a representante póstuma de uma Callas entretanto morta.
Aflige-me a lonjura das estepes, o afastamento progressivo das pessoas que me estavam próximas, a desertificação das coisas que me acontecem, as salas dos teatros para mim dantes abertas, o declínio de uma voz que hoje me escapa e em que me revia intacta, e que estava dentro da minha cabeça e da minha garganta e, não sei como, comecei a perdê-la nos bastidores dos vários teatros de ópera, também nas salas repletas, e até nas variadas encostas dos palácios, e das festas. Aflige-me esta perca mais do que qualquer outra, embora saiba que esta perca está inscrita noutra, mais derradeira e mais intrínseca, de me ter sentido perdida desde a minha primeira hora, sem apelo, nem agravo, nem redenção de qualquer espécie. Há percas que não nos deixam nunca, antes nos perseguem pela vida fora, acabando por atropelar-nos em repetida cadência, deixando-nos estatelados no passeio público, ou adentro das nossas portas. Há percas, feridas, brechas, coisas que nos faltam e que não tivemos nunca, coisas que deveríamos ter tido porque são essenciais, e a sua falta nos deixa de cócoras, e lentamente mata. Coisas como raízes que se agarrem ao solo e nele se fixem, âncoras que nos permitam a mobilidade no elemento líquido, pontos de referência que nos orientem, laços que nos estabeleçam as pontes e os contactos e nos envolvam numa mística». In Rita Cerdeiros, Maria Callas, De Lúcia a Violeta, Editora Pergaminho, Lisboa, 1998, ISBN 972-711-139-4.
                                                                                  
Cortesia de Pergaminho/JDACT