sábado, 1 de agosto de 2015

De Lúcia a Violeta. Maria Callas. Rita Cerdeiros. «E eu ouço a minha voz porque só assim me reasseguro de uma identidade que, de outro modo, me escapa, e porque só assim me certifico que existi de facto. Ouço-a todos os dias, vezes sem conta, ouço-a porque só ela me alimenta»

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Paris, princípios de Agosto de 1977
«(…) Eu, eu já não tenho forças, deixo-me cair no chão como um corpo inerte a quem já nada esquenta, vejo o mundo circular como uma névoa num turbilhão que de mim se afasta e que me rejeita, tenho cinquenta e três anos, sinto-me exaurida e sem forças, e sem um núcleo que me sustente em meio às coisas que me fazem falta, tenho os pés inchados, as pernas pesadas arrastam-se, as mãos tacteiam numa busca inútil, estou no meu quarto e levanto-me, sinto uma violenta dor de cabeça, entro em pânico, o que poderei fazer para me trazer de volta, o que poderei fazer para fugir a esta sensação de aniquilamento que durante anos venci mas que hoje me destroça, o que poderei fazer para deixar que o sangue me percorra trazendo-me consigo o mundo que me rodeia e cerca?
Há pessoas que vivem muitos anos, outras que morrem depressa, outras ainda que se arrastam, e eu sento-me nesta poltrona e olho em volta, a sala é ampla, os espaços altos, a mobília é renascença, os cortinados espessos e os tapetes persa, o gira-discos toca, ininterruptamente mas sem que o milagre se faça, a minha voz fixou-se nas gravações que hoje restam, mas já nada ma poderá devolver, nem trazer de volta. Olho para mim no espelho emoldurado e vejo-me reduzida a um universo cada vez mais fechado e hermético, devolvida que fico às poucas coisas que permanecem. De vez em quando vou à janela e observo as pessoas que passam, e a tristeza infiltra-se, e a amargura cava sulcos cada vez mais profundos no meu rosto, e nas minhas ancas. Recordo-me dos barulhos, das sombras, das pessoas que à minha volta pareciam ter forma e vida própria. Estavam ali. Imutavelmente e desde o princípio dos séculos. Estavam ali como se pertencessem, de facto, à luz, ao espaço, às flutuações do ar, e ao tempo em que se movimentam. Estavam ali desde sempre e por direito legítimo, sem que isso as preocupasse ou fosse para elas motivo de dúvidas ou angústias. Estavam ali porque pertenciam àquelas paredes, àquelas salas, porque era delas o ar que respiravam, porque faziam parte integrante daquela época e daquele cenário, como se não pudesse ter sido nunca de- outra qualquer maneira, estavam ali sem que isso constituísse para elas motivo de reflexão ou de mistério, estavam ali e tinham contornos definidos, rigorosos e precisos, como uma equação matemática. Movimentavam-se naturalmente pelas salas, tinham frases certas e convictas para trocar entre si que lhes corroboravam e confirmavam a existência, pareciam possuir dentro de si as certezas que lhes tornavam a vida fácil, e nos pés uma bússola que lhes guiava os passos e as mudanças.
E eu ouço a minha voz porque só assim me reasseguro de uma identidade que, de outro modo, me escapa, e porque só assim me certifico que existi de facto. Ouço-a todos os dias, vezes sem conta, ouço-a porque só ela me alimenta, ouço-a porque tremo ao pensar que, de mim, só ela, como recordação, resta, ouço-a porque só ela me devolve e me traz de volta, e esqueço-me que, para além dela, nunca existi de facto, de uma maneira natural e completa. Hoje ouço a minha voz para por momentos me iludir porque sei que de mim se trata, hoje ouço a minha voz para por momentos esquecer a minha total inépcia para ser uma pessoa como as outras, com raízes num chão que a sustente e que lhe devolva a firmeza e a segurança, hoje ouvir a minha voz é, o que me resta, e por mim adentro entra. Reconheço-lhe o timbre, as sonoridades e as ressonâncias, as suas proezas ressuscitam-me e encantam-me, e reencontro nela o que me tornou única, e fez de mim uma prima donna absoluta». In Rita Cerdeiros, Maria Callas, De Lúcia a Violeta, Editora Pergaminho, Lisboa, 1998, ISBN 972-711-139-4.
                                                                                  
Cortesia de Pergaminho/JDACT